A dor após o parto
O caos sertanejo da pobreza e da falta de comida não ofusca o brilho de uma mulher admirada pelos moradores da zona rural de Inajá. Em um sítio próximo ao local onde vive a família de seu Jeová, reside a brava Maria Otelina da Silva, de 57 anos. Movidas pelo que a senhora chama de dom, suas mãos já ajudaram centenas de crianças a virem ao mundo. Dona Maria é a parteira dos povoados inajaenses e do município de Manari, onde há mais de 40 anos compartilha suas habilidades com as mães que não têm condições financeiras de arcar com partos acompanhados pelos médicos nos hospitais.
Mas a louvável missão de dona Maria caminha paralela a dor de ver crianças sem a alimentação necessária. A parteira confessa que é difícil trazer ao mundo bebês arrodeados de pobreza e que sofrerão com a falta de comida. Mas, se depender da senhora, o pouco alimento que existir na sua casa servirá para diminuir a dor da fome dos pequeninos. “O pouco que tenho é dividido com quem precisa. Já passei muita fome e sei como é triste chorar quando não há o que comer em casa”, relata. Porém, o passado obscuro da escassez de alimentos ainda insiste em pairar sobre a vida da sertaneja. Moradora de uma simples casa construída com ripas e retalhos velhos, Maria até consegue ter algumas opções de comida, mas nem sempre complementa o cardápio.
Além de servir à população como parteira, dona Maria tenta plantar para garantir o próprio alimento. Se esforça, usa a enxada, põe sementes no chão, sonha em ver o milho ganhar vida em sua horta. Mas, em época de estiagem, a plantação não brota. Cabe a sertaneja esperar ansiosamente por doações de pessoas que compartilham solidariedade entre quem mais necessita. Vive apenas com o marido, outro agricultor jogado nas mãos do destino por não conseguir tirar do solo o que comer. Sob um curto sorriso, a mulher que ajuda crianças nascerem ainda conta que não teve filhos “porque Deus não quis”. Mas o breve ar de descontração desaparece quando, em tom baixo, ela descreve a problemática da fome no sertão. “É duro demais, meu filho. Querer comer e não ter é a pior coisa que pode acontecer com uma pessoa. E com criança é pior. A gente tenta até plantar alguma coisa, mas chuva não tem. Quando aparece alguma doação é a nossa salvação”, relata.
Diante da imprecisão no cardápio alimentar, a parteira reforça que boa parte do que come vem de ajudas, muitas delas oriundas de ONG´s que combatem a fome sertaneja. Costumeiramente, o que a parteira recebe como auxílio para ela e seu marido não supre todos os dias de um mês. Quando a fome aperta, a única opção de carne de dona Maria vem de caças realizadas dentro da caatinga: preá assado é o que complementa a cadeia alimentar da parteira e de outros moradores da região. Segundo populares, a necessidade os obriga a comer o animal, muitas vezes sem ser tratado corretamente:
Filho com fome
Mesmo grávida, Quitéria continuou sua lida no campo. Era da roça que ela tentava tirar a alimentação dela e do seu ex-companheiro. Hoje, todos os filhos continuam com a agricultora, mas o marido já não vive com ela. Segundo Quitéria, a única renda que ajuda a família sobreviver é o benefício governamental do Bolsa Família. “Além do problema da fome, sofri com um incêndio que destruiu minha casinha de taipa em 2014. Na época, quando a casa incendiou, perdi tudo: resto de comida, documento, umas roupinhas. Minha salvação foi dona Maria parteira, porque fiquei morando na casa dela. Até que o pessoal da ONG Ação Solidária descobriu minha história e para a honra de Deus construíram uma casa pra mim. Quando vi já chegou o caminhão com tijolo e cimento. Mas ainda hoje a gente precisa de qualquer ajuda. Fome é o maior medo que tenho, principalmente por causa dos meus filhos”, conta Quitéria. Ouça mais relatos no áudio a seguir:
Ainda em Inajá, Giovane José dos Santos, de 40 anos, amarga o desemprego e a angústia da insegurança alimentar. Diz ter vergonha de ver oito filhos pequenos passarem necessidade. Já é dono de dívidas feitas no comércio da cidade, quando ousou comprar cestas básicas que renderam consolo por pouco tempo. O Bolsa Família também se tornou a única fonte de renda dele e dos familiares. São cerca R$ 720 que garantem, com muito sacrifício, o mínimo de comida para a sobrevivência dos pequenos.
Sem ter com o que trabalhar, pois findaram até pequenos serviços com grandes agricultores da região, Giovane conta com a solidariedade dos amigos que mesmo sacrificados dão um pouco de comida para amenizar a fome da família. O agricultor teme não poder garantir um futuro com o mínimo de conforto para as crianças, mas garante que não deixa nenhuma delas sem ir à escola. Sem esperança por dias melhores, o trabalhador não poupa palavras tristes para descrever a situação.
“Tudo é muito difícil. Vou fazer o quê se não tem comida? Roubar e matar não vou. Tem que arrumar alguma coisa emprestada para dar de comer às crianças. Viver no Brasil está difícil, porque emprego não tem. A única coisa que tem é o Bolsa Família. Quando acaba, a gente fica só olhando para o mundo. É ruim ver as coisas para comprar e não ter dinheiro”, diz Giovane. “Fico vendo os filhos crescendo, passando necessidade, a casa nessa situação... Dá até vergonha. Esperar só por Deus mesmo, para ele mandar uma chuvinha para nós. A situação é fraca”, finaliza. Uma prova dessa situação, segundo a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) - Segurança Alimentar, do IBGE, em todo o Brasil, a insegurança alimentar grave afetou 4,8% da população de zero a quatro anos de idade e 4,9% da população de cinco a 17 anos.
Ouvir os questionamentos dos filhos por comida atormenta a esposa de Giovane, a também agricultora Gerlândia Alvino da Silva, de 32 anos. Na simples cozinha da casa de paredes de alvenaria e cobertas por barro, restam pequenas quantidades de feijão e arroz, únicas opções de alimentos para toda a família. Não há carne ou qualquer outro acompanhamento que complemente a refeição. “Os meninos pedem leite, biscoito, coisas de criança. Mas cadê o dinheiro para comprar? Cadê a comida que não tem? Acaba comigo ver eles pedirem e eu não ter como dar. Nenhuma mãe ou pai quer passar por isso. Em quase todas as casas acontece isso, não são todos dias que a gente consegue colocar na mesa alguma coisa pra matar a fome”, conta Gerlândia.
Assim como a real fome que ainda assola o bravo povo sertanejo, outra realidade vem à tona apesar de várias dificuldades. Pessoas de outras regiões, principalmente do Recife, reservam dias para visitar o sertão e prestar socorro para quem precisa. Adultos, jovens, idosos e crianças aguardam esperançosamente a chegada de grupos que enfrentam a caatinga para levar alento às populações ameaçadas pela falta de comida. Para muitos sertanejos, esse tipo de ajuda se tornou um pilar para a sobrevivência. Como a chuva não cai de forma suficiente e as ações políticas são ineficientes, resta aos necessitados aguardarem os “anjos”, como muitos chamam os colaboradores das organizações solidárias. É o que você confere na próxima reportagem.