A força da agricultura e a técnica do reaproveitamento
Na luta contínua do combate à fome, algumas iniciativas são dignas de elogios. Atividades que por meio de investimentos governamentais ajudam milhares de pessoas a colocarem no prato o pão de cada dia, garantindo o direito constitucional da alimentação. O incentivo à agricultura familiar é uma dessas ações, segundo estudos e pesquisas oficiais. O próprio Josué de Castro já dizia que a agricultura mantinha trabalhadores rurais no campo e evitava o êxodo que inflamava as centrais periféricas das grandes cidades. A cultura do plantio e da criação também é uma forma de valorizar os conhecimentos construídos pelo homem destas áreas, além de mostrar que é possível tirar comida da terra, mesmo em tempo de seca, desde que haja investimento público.
De acordo com o Censo Agropecuário, do Governo Federal, o Brasil conta 4.367.902 agricultores familiares e, desse total, 50% atuam no Nordeste do País. Se enquadram nesse contexto as famílias que administram a propriedade e têm essa atividade produtiva como principal fonte de renda. No sentido mais puro da expressão “Quando o campo não planta, a cidade não janta”, a agricultura familiar permite que o trabalhador produza seu próprio alimento, além de poder comercializar os produtos diretamente para o consumidor final ou através de parcerias governamentais. Duas dessas parcerias são prontamente apontadas, de forma muito positiva, como ações que ajudaram o País a sair do Mapa da Fome: o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). O primeiro compra produtos diretamente do agricultor familiar e repassa os insumos para entidades de cunho socioassistencial e famílias em situação de insegurança alimentar, enquanto que o Pnae oferece alimentação saudável para escolas de todo o Brasil, compondo a merenda escolar dos estudantes.
Como forma de valorizar a produção do homem do campo, uma lei federal estabelece que 30% dos valores repassados ao Pnae devem ser investidos na compra direta de produtos da agricultura familiar. Segundo dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), mais de 40 milhões de estudantes são atendidos em todo o País, bem como o investimento realizado em 2015 passou de R$ 3,7 bilhões. Sobre o PAA, o secretário da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA), Caio Rocha, destaca que tanto o agricultor quanto as comunidades que recebem o alimento são beneficiados. “O PAA atua, principalmente, através da compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar com doação simultânea a entidades da rede socioassistencial e famílias em situação de insegurança alimentar. Dessa forma o programa traz benefícios para as duas pontas, fortalecendo a agricultura familiar e as economias locais através de circuitos curtos de comercialização e ajudando no combate à fome com a disponibilização de alimentos saudáveis”, frisa Rocha.
O secretário explica ainda de que forma o agricultor pode participar do programa e como o PAA deve ser executado pelo poder público. “O PAA possui uma modalidade que pode ser executada por todos os órgãos federais e de estados e municípios que permite a compra, com dispensa de licitação, de alimentos produzidos pela agricultura familiar com fins de abastecimento das necessidades de consumo desses órgãos, como por exemplo, os restaurantes populares, universitários e, principalmente, toda a demanda de alimentos das Forças Armadas. Anualmente, são beneficiados entre 80 e 100 mil agricultores familiares. Existem diversas formas de participar do Programa, seja individualmente, modalidade na qual o produtor rural recebe os recursos através de um cartão benefício diretamente na sua conta bancária, seja através de associações e cooperativas”, complementa.
De acordo com o MDSA, o investimento federal no PAA, em 2016, foi de R$ 478 milhões e as compras feitas aos agricultores familiares somam cerca R$ 50 milhões. Pelo orçamento governamental, em 2017 o montante investido no programa deverá ser R$ 294 milhões. Para Caio Rocha, o apoio aos agricultores familiares é essencial para o País. “O suporte contribui para a segurança alimentar das próprias famílias do campo. Ao dar incentivo para a produção de alimento nas pequenas propriedades, permite-se uma melhoria na produção de autoconsumo dessas famílias, o que garante a segurança e por meio do aumento do poder aquisitivo que a comercialização do seu excedente proporciona. Além disso, é característica típica da agricultura familiar a variedade de cultivos e a valorização de produtos da biodiversidade local, o que garante uma maior diversificação da alimentação com impactos importantes na qualidade da nutrição dessas famílias”, diz o secretário. “A agricultura familiar também contribui de forma significativa para a segurança alimentar de suas localidades, por meio, principalmente, de circuitos curtos de comercialização e em algumas regiões através da integração à indústria. A agricultura familiar responde hoje por 70% dos alimentos consumidos no País, ficando clara a importância do seu fortalecimento para a soberania alimentar”, finaliza Rocha.
Segundo o secretário especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, José Ricardo Ramos Roseno, o Governo Federal investiu na agricultura familiar em 2016 um total R$ 1,495 bilhão. Para 2017, a Lei Orçamentária prevê liberação de R$ 1,696 bilhão. De acordo com o gestor, a produção rural se mantém essencial para garantir a segurança alimentar do brasileiro. “Temos um papel central na segurança alimentar do País, já que 70% da produção de alimentos vêm da agricultura familiar. Ela tem um papel social e econômico muito importante, sendo promotora do desenvolvimento. Conforme os dados do Censo, esse segmento é responsável por 74% dos postos de trabalho do meio rural. Além disso, mais de 50% dos produtos da cesta básica são oriundos da agricultura familiar. Somos responsáveis também pela produção de riquezas para o País. Além disso, 38% do PIB Agropecuário é oriundo da agricultura familiar. A importância econômica e social existe e é a nossa maior força para continuarmos o trabalho”, reforça o secretário.
Segurança alimentar por meio da agricultura
No clima tranquilo do interior, em que os passarinhos ditam o tom ambiente, dona Maria José da Silva, de 53 anos, vive ao lado dos seus pais. É no Sítio Pau Santo, situado na Zona Rural de Caruaru, Agreste de Pernambuco, que a agricultora começa a trabalhar, diariamente, no início da manhã. Rotina idêntica a de outros agricultores que levantam cedo da cama para tirar da terra o que há de melhor para comer. No quintal de dona Maria, uma grande criação de galinhas gera uma renda mensal para a trabalhadora em torno de R$ 2 mil. A pernambucana é uma das participantes do PAA e, há dois anos, integra uma rede de trabalhadores beneficiados pelo programa.
Antes, toda renda familiar de dona Maria se resumia ao salário mínimo dos pais. Ela passou por dificuldades financeiras e enfrentou as consequências da estiagem que castigou inúmeros estados nordestinos. Vida difícil que ganhou um ar de esperança a partir do momento em que a agricultura familiar praticada na comunidade de dona Maria recebeu o incentivo do PAA. De acordo com a Associação Comunitária dos Moradores do Sítio Pau Santo, 98 famílias participam do programa vendendo produtos para a Prefeitura de Caruaru, e posteriormente os alimentos são repassados para grupos carentes ameaçados pela insegurança alimentar.
Dona Maria entrega ao PAA, a cada 90 dias, cerca de 100 galinhas caipiras. Ela ainda possui pequenas plantações de feijão, que também é vendido à Prefeitura pelo programa. Segundo a trabalhadora, o incentivo mudou sua condição e ainda fortaleceu a agricultura familiar da comunidade. “Está sendo muito bom para nós que vivemos deste tipo de produção. Também é importante para as casas de caridade que precisam de comida e que recebem nossos alimentos”, ressalta. De acordo com o Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), um dos órgãos que capacita os profissionais para atuação no PAA, só a comunidade de dona Maria beneficia mais de 700 pessoas por meio da entrega de alimentos.
Presidente da Associação Comunitária, Daniel Severino da Silva aponta a agricultura familiar como a atividade mais importante para os moradores da Zona Rural. Segundo ele, o homem do campo, a partir do momento em que produz o próprio alimento com a ajuda do poder público, fica imune à problemática da insegurança alimentar, além de fortalecer a produção que alimenta o povo das áreas urbanizadas. Ele explica que, no máximo, um agricultor vende por ano pelo PAA R$ 6.500 em alimentos. No vídeo a seguir, confira depoimentos de dona Maria e Daniel acerca da importância dos investimentos para a agricultura familiar:
Também no Agreste de Pernambuco, na cidade de Camocim de São Félix, a agricultura familiar dita a felicidade dos trabalhadores que põem alimento na mesa deles e de outras pessoas. Muitos camponeses vivem, exclusivamente, da produção rural, e não se submetem a largar o campo em busca de emprego nas grandes cidades. Renato José Dantas, 33 anos, nasceu no interior e sempre desfrutou dos alimentos produzidos no campo. Também presenciou a dura realidade de seus pais – agricultores - durante as recentes estiagens que maltrataram as plantações e ameaçaram a segurança alimentar de muitos nordestinos.
Mas para superar as dificuldades, o trabalhador encontrou no PAA e em outras parcerias governamentais, além de privadas, a oportunidade de se estabelecer como agricultor familiar. Renato produz maracujá, tomate, tubérculos e ainda cria vacas e carneiros. Trabalho que, segundo ele, é a principal fonte de renda da família. “Tudo que consegui até hoje foi pela agricultura familiar. Não penso e nem quero trabalhar com outra coisa. E quando existe ajuda do governo as coisas ficam mais fáceis”, conta.
Um dos locais beneficiados pelos alimentos de Renato através do PAA é o Centro Camociense de Apoio à Pessoa com Deficiência (Cecaped), situado na área urbana de Camocim. No local, mais de 30 crianças participam de atividades pedagógicas após a escola, além de integrarem brincadeiras. Por mês, a casa recebe cerca de três toneladas de alimentos oriundos da produção de Renato e de muitos outros trabalhadores da região, que ajudam a alimentar os alunos do Cecaped. A seguir, assista no vídeo a rotina de Renato e o depoimento da coordenadora do Centro, Ana Lúcia da Silva, que destaca o quão é importante receber comida dos agricultores familiares.
Ainda em Camocim de São Felix, a agricultura, para dona Maria Gisely dos Santos, de 38 anos, representa muito mais do que um trabalho. Nascida e criada em meio à produção de alimentos, a trabalhadora enfrentou, há três anos, insegurança alimentar. Ao lado do marido, o também agricultor José Arlindo da Silva, 47 anos, viu a estiagem castigar suas plantações de coentro e alface. Faltou dinheiro e alimento. Sobrou fome.
“Faltavam as coisas dentro de casa. Tinha semana que a gente não conseguia dinheiro para comprar comida. Teve dia de não ter nada para comer. A sorte era que a gente pedia ajuda da família e alguns ajudaram com o pouco que tinham, porque eles também são pobres. Foi duro! Mas hoje a situação está bem melhor. Eu e meu marido entramos no PAA e fechamos parcerias com comerciantes daqui mesmo da cidade. Conseguimos vender as coisas através de uma associação e dá para garantir um dinheiro no final do mês. Antes, a gente vendia e às vezes não nos pagavam. Perdemos muita coisa. Hoje, graças a Deus, a agricultura familiar não é só um trabalho, é também uma atividade prazerosa para mim e meu marido”, conta a agricultura.
Seu José Arlindo, ao lado de dona Maria, acompanha, todos os dias, o sol ganhar o céu. O trabalho começa cedo para o casal. Cuidam da terra até o final da tarde, de domingo a domingo, mas não deixam o cansaço dominá-los. No mesmo rosto onde escorre o suor pela lida dura da agricultura familiar, brotam sorrisos pela certeza de que a terra dará comida. José e Maria são exemplos concretos de que quando existe investimento público, aumentam as chances do trabalhador rural ter comida na mesa, independente da seca.
Na área com aproximadamente um hectare, o marrom do solo é colorido pelo verde do alface. “Fico feliz porque vejo minha terra dando vida. Minha vida mudou. Agradeço muito a Deus porque consigo garantir meu alimento e ainda vendo meus produtos para ter um trocado no final do mês”, relata o agricultor, aos risos. Confira no vídeo o trabalho de seu José e o depoimento do extensionista do IPA, Leirson Salvador Bezerra, responsável por orientar os trabalhadores rurais em prol das produções:
Sopa amiga
Corroborando com a conclusão do professor, uma pesquisa realizada pelo World Resources Institute (WRI) Brasil mostrou que o País desperdiça, anualmente, 41 mil toneladas de alimentos. De acordo com a coordenadora de Mudanças Climáticas do WRI, Viviane Romeiro, o número coloca o Brasil entre os dez países que mais perdem e desperdiçam alimentos no mundo. “Estamos falando da cadeia de perda e de desperdício. Perda que tem a ver com a colheita, a pós-colheita, com a distribuição e o desperdício que já vem no final da cadeia, que é no varejo, no supermercado e com o hábito do consumidor”, comenta Viviane, também em entrevista à Agência Brasil.
Em um cenário em que a insegurança alimentar ainda faz vítimas, ao mesmo tempo em que o País conta com potencial para a produção de alimentos, é de suma importância evitar o desperdício desses produtos. Em Pernambuco, uma iniciativa vem ajudando comunidades carentes a partir de um projeto que aproveita alimentos, cujo destino seria o lixo, não por falta de qualidade, mas por perda de características de comercialização. No Centro de Abastecimento e Logística de Pernambuco (Ceasa), o programa Sopa Amiga, do Governo do Estado, reaproveita alimentos que deixariam de ser comercializados e doa uma sopa cheia de nutrientes para comunidades carentes, de forma gratuita.
Criado em 1998 e reinaugurado em 2007, o programa recebe, mensalmente, cerca de 100 toneladas que iriam para o lixo por pequenos desgastes que deixam os produtos inviáveis para o comércio. A doação parte de comerciantes da própria Ceasa e tudo que é arrecadado com possibilidade de aproveitamento passa por um cuidadoso processo de higienização na fábrica do projeto Sopa Amiga. Segundo a coordenação do programa, a produção semanal é de 2 mil quilos de sopa, beneficiando mais de 50 casas de caridade. No total, cerca de 1.800 famílias de cidades do Recife e Região Metropolitana recebem as doações.
De acordo com o coordenador do programa, Domingos Sávio, a comida serve para combater a insegurança alimentar e é formada por valores nutricionais graças a uma mistura de produtos. “São 15 tipos diferentes de produtos. Na parte de hortícolas, por exemplo, há tubérculos, legumes, folhosos, frutos e cereais. Incluímos ainda proteína animal, cozimentos e sais para o complemento nutricional da sopa. As pessoas precisam ter a consciência de que os alimentos podem ser aproveitados, desde que passem por processos de higienização”, destaca Sávio. Confira no vídeo a seguir o processo de produção da sopa:
Tão importante quanto à produção da sopa é a atitude dos comerciantes que se dispõem a doar os alimentos em prol do projeto. Para muitos deles, é gratificante saber que a comida tem como destino famílias que ainda enfrentam as consequências da insegurança alimentar. Porém, além dos comerciantes, um voluntário, de forma espontânea, leva semanalmente produtos que podem ser aproveitados pelo programa. O militar aposentado César Junqueira reuniu um grupo de amigos para arrecadar na própria Ceasa alimentos que seriam jogados no lixo, tendo como destino, além do Sopa Amiga, comunidades em situação de vulnerabilidade social.
“Reuni um grupo de amigos voltado para o bem. Recolhemos os alimentos que seriam jogados fora e fazemos uma seleção para aproveitar alguns. O objetivo é evitar o desperdício de comida e levar alimentos para quem têm dificuldade de acesso. Em 34 meses, nós já recolhemos mais de 500 mil toneladas de alimento. O que posso falar é que o maior beneficiado, na hora que a gente leva o alimento, não é quem está recebendo, mas sim nós que estamos doando. As pessoas nos recebem com tanta gratidão e felicidade, e isso já nos enche de alegria”, relata o voluntário.
Uma das mais de 50 entidades atendidas pelo Sopa Amiga fica numa comunidade carente no bairro de Tabatinga, em Camaragibe, Região Metropolitana do Recife. Organização Não Governamental, o Instituto São Jorge promove capacitações profissionais e atividades culturais para cerca de 4 mil famílias. Boa parte dessas pessoas é carente e aproveita as doações do projeto, todas as quintas-feiras. Assista no vídeo a seguir:
O poder público tem uma responsabilidade grande no combate à insegurança alimentar. Cabe aos governantes manter as boas ações e criar políticas que identifiquem e ajudem os brasileiros ainda vítimas da falta de comida. Por outro lado, nós da sociedade civil também temos um papel valioso nesse processo. Um simples cuidado contra o desperdício de alimento ou o respeito e solidariedade para com o próximo podem evitar que muitas pessoas não tenham o pão de cada dia em sua mesas. No fim, fica claro o quão é fundamental unir forças para garantir que a fome não chegue aos lares brasileiros.