Pobreza maltrata e a fome não passa
Um silêncio quase que absoluto paira sobre o sertão. O pouco que se pode ouvir é a areia sendo levada pela ventania que insiste em aliviar a alta temperatura, diante de um sol escaldante arrodeado pelo azul celeste. O terreno branco, cercado por uma vegetação seca e sem sinal de solo fértil, abriga humildes casebres distantes um dos outros, obrigando longas caminhadas para os nativos que querem chegar aos seus destinos. Nesse local, sobrevivem homens, mulheres, crianças, jovens, idosos e animais desnutridos. Isolados, relembram personagens literários, como os que ilustram o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Não sabem o que é lazer e muito menos conforto. Estão distantes de tudo, inclusive, de direitos básicos da humanidade. Passam fome, dormem no chão. Choram, se desesperam, mas não se atrevem a pegar no que é alheio. É a pobreza estampada nos rostos de sertanejados calejados pelo sofrimento e insuficiência de políticas públicas que possam aliviar as angústias, por mais que alguns atribuam a pobreza à vontade de Deus. No entanto, não perdem a fé divina em busca de um socorro. E não se trata de um panorama de muitos anos atrás. É a falta do pão de cada dia em pleno ano de 2016.
O silêncio é quebrado com o som de uma estaca cavando o solo duro. A madeira é parte da parede improvisada da casa do agricultor Jeová Aprígio da Silva, de 42 anos de idade. Em um terreno isolado na cidade pernambucana de Inajá, no sertão do Moxotó, o bravo agricultor esgota seus últimos sinais de força abrindo um buraco para cravar e fortalecer a estrutura do seu humilde casebre. No lugar de janelas, pedaços de retalhos velhos foram improvisados para conter o sol e a chuva, enquanto colchões estragados pelo tempo servem como a única opção de “conforto” para o trabalhador e sua família. O local retrata a pobreza que insiste em marcar o povo sertanejo: menos de cinco metros quadrados guardam um único vão que, segundo seu Jeová, se divide em quarto e cozinha. Essa última conta com panelas sucateadas, queimadas pelo fogo a lenha, e vazias. Praticamente não há o que comer. E ainda se houvesse, não seria suficiente para o agricultor e seus familiares. “Posso até deixar de comer para dar a minha netinha. Antes eu passar fome do que ela”, justifica Jeová.
Junto com o agricultor, sobrevivem no humilde casebre a esposa, duas filhas, o genro e a neta recém-nascida. O choro da pequena Maria* também quebra o silêncio do terreno. “É choro de fome, moço! Ela só tomou um pouco de leite que sobrou de uma doação”, diz a mãe da garota, Juliene Ferreira de Cristo, que não sabe ao certo a idade da pequena, mas arrisca uns dez meses. Na residência improvisada, a família tenta resistir à fome e falta de água. Uns chegam a dormir no chão de terra quando não há espaço para todos se deitarem nos colchões desgastados, mas o quarto feito por seu Jeová com engenharia precária, porém com carinho, fica reservado para acomodação de Maria e seus pais. Trata-se de um cômodo que aos olhos de muita gente jamais teria condições de abrigar uma criança que veio ao mundo meses atrás. Entretanto, não há solução palpável. O único fio de esperança se faz presente nas orações do patriarca da família. “Fé em Deus eu tenho muita, meu irmão. Quando tem comida, ‘nós come’ (sic), mas quando não tem, o jeito é esperar no Pai. A terra não dá plantação por causa da seca e eu não tenho criação de bicho para matar e comer. O jeito é contar com a boa fé dos amigos. A fome existe e está aqui no sertão. Infelizmente, não tenho recurso para reformar minha casinha. A situação é essa que você está vendo”, desabafa seu Jeová.
Assim como qualquer pai de família, o agricultor guarda no peito o dever e a obrigação de cuidar dos parentes. Porém, a realidade castigada pela miséria o deixa de mãos atadas. É preciso ter muita calma e não se desesperar ao ouvir o choro fino da neta e da filha mais nova, Mila*, de um ano, quando não há qualquer opção de comida. O que se pode fazer, segundo o trabalhador, é tentar a sorte de arranjar serviço nas terras dos produtores que, graças à tecnologia irrigatória e aos investimentos financeiros, ainda conseguem tirar do solo alguns frutos. “Um dia de trabalho catando tomate rende, pelo menos, uns 30 contos. Se eu consigo isso, trago alguma coisa pra casa para socorrer a vontade de comer das meninas”, explica o trabalhador. Mas a falta de trabalho é mais comum do que a existência de ocupação. E é no período ocioso que seu Jeová tenta não cair nos braços da tristeza e nas amarras da vergonha por não ter como suprir a necessidade dos familiares. Cabe a ele, então, pedir um pouco de comida aos moradores das comunidades vizinhas ao seu casebre, mesmo que isso custe longas caminhadas, ou dar a sorte de receber visitas de organizações não governamentais que desbravam os sertões para amenizar a fome de quem não tem uma alimentação regular. Na ausência de qualquer socorro, falta também o pão de cada dia. No vídeo a seguir, confira mais relatos do trabalhador:
"do jeito que deus quer"
Sob o sol sertanejo das 12h, Manoel aproveitou um dia de sábado para tentar a sorte. Ouviu dos companheiros que um caminhão, repleto de comida e roupas, estaria passando pelas zonas rurais de Manari e Inajá para ajudar pessoas carentes. “O povo de Recife, às vezes, traz umas coisas para nós. É Deus que coloca eles no nosso caminho. Tenho certeza que o Pai ouviu nossas orações”, diz o rapaz. Apressado, o jovem agricultor vestiu uma calça, camisa simples de botão e um sapato envelhecido, e partiu junto com sua esposa com destino ao caminhão. O pai e a mãe de Maria* caminharam com a pequena no braço, no chão de terra batida, arrodeado com rochas e espinhos, com objetivo de conseguir, no mínimo, uma cesta de comida que garantisse o alimento da família por, pelo menos, uma semana.
Cada passo do casal era como se o socorro estivesse mais perto. Para quem não tem comida, a mínima ajuda representa benção divina alcançada após inúmeras horas de joelho no chão e oração. O mérito da questão não é a orientação religiosa, mas sim a maneira como o sertanejo encara a miséria sem fraquejar ou se entregar ao desespero, independente do segmento místico adorado. Por isso, na medida em que Manoel caminhava ao lado de Juliene, demonstrava fé por meio de palavras, na esperança de que pelo menos uma cesta básica sobrasse para sua família, afinal de contas, outros sofridos sertanejos disputavam as doações vindas de uma ONG do Recife.
Mas a caminhada quilométrica não rendeu a ajuda esperada. O casal acabou ficando sem receber doação, uma vez que os alimentos já haviam sido entregues às famílias. O retorno ao casebre se tornou ainda mais longo pelo desapontamento de voltar para casa sem comida. Novamente, Manoel, mesmo triste, não reclamou, e apenas disse esperar que Deus o abençoasse em outro momento. E o abençoou. Integrantes da ONG, ao se depararem com a casa deteriorada da família de Jeová, conseguiram alguns alimentos. Manoel recebeu a ajuda, agradeceu incansavelmente e voltou a lembrar que a doação “era benção divina”. Porém, até que uma nova ajuda chegue aos braços do jovem agricultor, vai durar a incerteza sobre se haverá uma próxima refeição.
Ciente do histórico de pobreza do sertão e com a certeza de que a fome persistirá por mais tempo, a esposa de seu Jeová, Josefa Ferreira de Cristo, é a integrante da família que menos atribui a pobreza à vontade de Deus. Ela afirma que a falta de comida nos pratos dos sertanejos é justificada pela ausência das políticas públicas governamentais. Segundo ela, nem mesmo o “cartãozinho”, forma como chama o cartão do programa federal Bolsa Família, é suficiente para sanar a vontade de comer. Os cerca de R$ 200 que compõem a renda da família já estão comprometidos mensalmente no pagamento de dívidas, pois seu Jeová precisou comprar comida fiado para resistir à fome. No vídeo a seguir, Josefa e o genro Manoel detalham a situação família que, infelizmente, não representa um caso isolado de fome no Brasil.
Uma família com fome em meio a tantas outras
no brasil, 52 milhões de pessoas enfrentam algum tipo de insegurança alimentar
A família de seu Jeová vive na divisa entre duas cidades que figuram entre as piores do Brasil sob a ótica do mais recente Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios (IDHM), produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Sem um terreno com demarcação oficial, o agricultor acredita que seu casebre está do lado de Inajá, município de posição 5444º e com IDHM de 0,523. Já a cidade vizinha, Manari, tem o pior resultado do Estado de Pernambuco: posição 5547º e IDHM de 0,487. Ambas as localidades guardam outras famílias ainda castigadas pela falta de comida. A nível nacional, há cerca de 7 milhões de brasileiros que ainda são ameaçados pela fome – nível mais grave da insegurança alimentar -, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De acordo com a ONG Ação Solidária no sertão, que há quase cinco anos leva alimentos para sertanejos de Manari e Inajá, pelo menos 400 famílias das duas cidades necessitam, corriqueiramente, de alimentos. A esmagadora maioria possui ajuda de custo do Bolsa Família, mas o incentivo financeiro nem sempre é suficiente. Outra constatação feita pelo IBGE aponta que 5,6% dos domicílios nordestinos registram casos graves de insegurança alimentar. Já a região Norte possui o pior índice do Brasil, com 6,7%. Como em tantos outros Brasil afora, os municípios pernambucanos de Manari e Inajá guardam tristes histórias de famílias que nem sempre têm o que comer. São relatos que chocam quem não sabe ou não conhece de perto o real sentido da falta de comida. Situações que trazem um alerta importante: a Organização das Nações Unidas (ONU) já declarou que o Brasil saiu do Mapa da Fome em 2014, mas ainda há muitos casos que merecem bastante atenção dos governantes e solidariedade da sociedade civil.
Para a família de seu Jeová, ainda existe um “mapa da fome”. E ele está entre o agricultor e seus familiares, no casebre improvisado, castigado pelo sol e raras chuvas. Também está no medo do próprio Jeová em não conseguir comida, principalmente para suas crianças. O “mapa da fome” do pobre trabalhador é o vão chamado por ele de cozinha, onde a colher bate no fundo vazio da panela, ou no mexido de água e farinha que chega à barriga para aliviar o sofrimento. O fardo pesado do agricultor e sua família é apenas um exemplo de tantos outros que não desfrutam do pão nosso de cada dia.
Os nomes utilizados para as crianças são fictícios, para preservar a identidade dos personagens.