O amor que alimenta

ONG recifense enfrenta a fome que assola sertanejos. Colaboradores, inquietados com as marcas da insegurança alimentar, ajudam cerca de 400 famílias

A face mudou. No lugar das marcas de tristeza, passaram a predominar os trejeitos de felicidade. É impossível não sorrir com a nova vida. Ao que parece, as lágrimas de desespero se esgotaram, restando apenas os pingos de emoção pelo sonho realizado. Doeu, mas passou. Foi triste, amargurante, de partir o coração. Dá medo lembrar da fome. É melhor viver o que há de bom e compartilhar com todo mundo a importância que “as pessoas têm na vida das pessoas”. Faltam palavras no dicionário de Maria Aparecida do Nascimento para descrever como sua vida mudou. Aos 44 anos, sobreviveu à falta de comida e à seca brava, além de conseguir criar os filhos e, consequentemente, os netos. Hoje, já não é preciso dormir com receio de que o telhado velho caia e acabe com sua vida, pois a casa é nova, bem estruturada, um abrigo para família. No novo lar, reside junto com o marido, nove filhos e nove netos, na área rural e seca de Manari, a cidade com pior IDHM de Pernambuco, no sertão do Estado. São quase 28 anos morando no local, distribuídos entre tristezas, socorros e vitórias.

Maria Aparecida (segunda da esquerda para a direita) ao lado dos familiares, em frente à nova residência - Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Na infância, passou fome. A adolescência também foi marcada pela insegurança alimentar, atrelada à miséria. Na vida adulta, novamente foi assoitada pelo estado social revelado ao mundo por Josué de Castro. Mas, há cerca de três anos, Maria contou com a ajuda de pessoas que nunca tinha visto, justamente em um período que o sertão pernambucano passava pela pior seca dos últimos tempos. Sem comida e com uma casa caindo aos pedaços, a sertaneja foi presenteada com a construção de uma residência, graças ao trabalho da ONG Ação Solidária no Sertão, sediada no Recife, mas de atuação frequente em municípios da região do Moxotó. Em abril de 2014, o lar foi entregue à Maria e sua família, e o que parecia ser apenas uma simples construção se tornou, segundo a agricultura, o momento mais feliz da sua vida. Hoje, ela e os parentes têm um canto digno para morar e tirar da terra, diante de muito sacrifício, um pouco de comida. A família conta ainda com as doações de alimentos oriundos do trabalho da ONG. Conheça no vídeo a seguir mais detalhes da trajetória de luta da trabalhadora:

A ONG Ação Solidária foi fundada em 18 de novembro de 2012, a partir da inspiradora ideia do administrador Antonio Idelfonso. Com a proximidade do período natalino, ele resolveu envolver sua família em um Natal diferente dos anos anteriores, após se deparar na televisão com a estiagem enfrentada pelo povo do sertão. Seu Antonio, apoiado pela esposa Lau Gomes, convenceu familiares a arrecadar alimentos e roupas para serem entregues nas comunidades sertanejas. A princípio, seria apenas uma ação isolada, mas se tornou a primeira de muitas viagens que socorrem quem tem fome e sede. De acordo com o casal, a ONG atende atualmente cerca de 400 famílias de cidades como Inajá e Manari, todas inseridas em um contexto de extrema pobreza, seca e de grave insegurança alimentar. No total, em torno de 30 colaboradores, entre familiares e amigos, compõem o grupo que, mensalmente, sai do Recife para desbravar o sertão com o propósito de levar comida, apoio e, principalmente, amor ao próximo.

Cerca de 400 famílias são ajudadas pela ONG Ação Solidária - Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Segundo Lau Gomes, hoje vice-presidente da Ação Solidária, os mantimentos vêm de doações. Centenas de cestas básicas são reunidas na sede da ONG, no bairro do Cordeiro, Zona Oeste do Recife, além de roupas e brinquedos em bom estado. A partir de um trabalho de campo, são identificadas as famílias mais necessitadas, assim como moradores da própria região fazem contato com dona Lau, para ajudar a definir o roteiro solidário das viagens. Da capital pernambucana, o grupo parte em direção ao interior do Estado e durante dias visita comunidades à margem do bem estar social e, principalmente, de direitos básicos, como alimentação regular, saneamento e moradias dignas.

Entre os moradores das comunidades socorridas pela ONG, é grande a admiração pelo serviço prestado. Incontáveis são as palavras de agrecimento e sobram sorrisos que representam o alívio em receber comida. Em locais isolados, onde geralmente são instalados casebres no “meio do nada”, famílias esperam ansiosamente pelo caminhão que traz as doações. O veículo percorre caminhos já decorados por Lau e Antonio, cujo destino final é a solidariedade para com o próximo. As estradas de barro e endurecidas pela estiagem dificultam a viagem, porém, não impedem que o objetivo maior seja alcançado. “A gente se sente muito feliz levando um pouco de solidariedade para essas pessoas. Voltamos para o Recife renovados e com a certeza de que não devemos reclamar dos nossos bens, porque ainda tem muita gente neste mundo precisando de ajuda e nem por isso reclamam da vida”, comenta dona Lau.

Agricultora, Maria José da Silva é uma das moradoras que são ajudadas pelo ONG. No Sítio Baixa Dois, zona rural de Inajá, ela reside ao lado do marido adoentado, José Luis da Silva, e afirma que sua renda mensal é de R$ 230, oriundos do Bolsa Família. Para Maria, o socorro da Ação Solidária é “um presente de Deus” que se tornou a solução contra a falta de comida. “A importância deste trabalho aqui é muito grande para a gente. Chuva é devagar, o ‘cabra’ não pode plantar nada. Não temos ganho nenhum, a não ser o dinheirinho do ‘cartãozinho’ (Bolsa Família). Quando falta comida, os amigos vêm e trazem uma ‘feirinha’. Eles são muito bons para nós. Chegam aqui com muito prazer e sempre nos dão alguma coisa, graças a Deus”, diz Maria José. "Esta bondade ajuda a gente demais! Sou muito grato a Deus por essas pessoas", complementa seu José Luis.

Sertanejos enfrentam a insegurança alimentar que ainda assola o Brasil - Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Colaboradora da ONG, a médica pediatra Ane Carneiro Rosa visita comunidades, além de desempenhar atendimentos emergenciais para os sertanejos. De acordo com a profissional, em alguns casos é preciso encaminhar a pessoa para uma unidade hospitalar, de tão séria que é a situação. Por causa da condição de pobreza, muitos adoecem, e à margem de atendimentos corretos, ficam sem nenhum tipo de ajuda. No áudio a seguir, ela descreve o trabalho realizado e explica as consequências da insegurança alimentar:

Além de receber doações, a ONG Ação Solidária realiza brechós no Parque Dona Lindu, no bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife. Peças de roupas novas e seminovas são comercializadas com o objetivo de arrecadar recursos financeiros para comprar alimentos que serão levados ao povo do sertão. O grupo também constrói casas, como a da agricultora Maria Aparecida, que são dadas para famílias em situações graves de miséria e moradia. Ao todo, já foram entregues quatro lares. Também há construções de sisternas que servem para armazenar água quando chove. Interessados em ajudar a ONG podem acessar a fanpage no Facebook ou entrar em contato com os telefones (81) 3436-5245 ou 9-9685-9692.