Áreas urbanas ainda sofrem com insegurança alimentar

Periferia das cidades urbanizadas guardam histórias de famílias que enfrentam incerteza sobre o ‘pão de cada dia’. Há quem aproveite comida até do lixão

Certas pessoas trazem histórias de luta que propagam superação. Jaciara Bezerra das Chagas, 35 anos, é mulher guerreira, que mesmo em meio à pobreza não esgota forças para cuidar dos filhos. Nem que seja para garantir o mínimo de alimento. Do lixão, ela retira recicláveis que se transformam em esperança de conseguir dinheiro para botar na mesa o pão de cada dia. Por mês, são R$ 500 que amenizam as necessidades dela, dos filhos e do esposo, que corre às ruas em busca de um emprego fixo. Mas, diante da incerteza de que a renda mensal garantirá comida, a saída é frequentar todos os dias, independente do que aconteça, o lixão localizado no bairro de Aguazinha, na histórica cidade de Olinda, Região Metropolitana do Recife. A comunidade, por sinal, está à margem do que se entende por Patrimônio Cultural da Humanidade, título dado à terra olindense. A localidade rente ao lixão é símbolo do descaso do poder público: ruas sem saneamento básico, lixo nas vias públicas, além de estrutura extremamente precária entre os barracos de madeira construídos nas costas da sujeira.

Jaciara e o filho mais novo sentem na pele os resquícios da insegurança alimentar - Brenda Alcântara/LeiaJáImagens

A linha de pobreza é clara na vida de dona Jaciara e de tantas outras famílias que sobrevivem nessa comunidade. As dificuldades começam logo no acesso ao local, uma vez que o caminho é estreito, repleto de buracos e paralelo a um canal de esgoto a céu aberto. Cenário como tantos outros que resumem, sem rodeios, a pobreza que ainda marca o Brasil. Essas características também são somadas a insegurança alimentar enfrentada por Jaciara e seus familiares, corroborando ainda com a perspectiva de que, mesmo em áreas urbanas, a falta de comida pode se fazer presente. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quanto mais intensa a situação de insegurança alimentar, menor é a proporção de residências atendidas por serviços públicos. Na mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2013, casas com este tipo de problema no nível “leve” eram menos auxiliadas pela rede coletora de esgotamento sanitário (44,2%) do que os lares em segurança alimentar (63,2%). Considerando o nível “grave” da falta de comida, a proporção de casas atendidas pelo serviço foi ainda menor (34,4%).

Catadores aproveitam comidas encontradas no lixão - Brenda Alcântara/LeiaJáImagens

No lixão, das 7h às 18h, dona Jaciara revira os objetos em busca de recicláveis e não se exime ao encontrar alimentos vencidos. A catadora aproveita a comida que encontra, leva para casa e dá “graças a Deus por isso”. Ela sabe o que é sentir fome e não ter o que comer. Sabe também a dimensão da tristeza que é ouvir o filho caçula, de apenas três anos, pedir comida quando não há. Durante a catação, cuscuz, verduras, leite e até carnes são aproveitados pela trabalhadora, que dispensa o nojo pela comida em meio ao lixo e se apodera da necessidade de suprir a falta de alimento. “Passar fome é uma desgraça. É capaz de a gente morrer. Já desmaiei de fome na rua, porque tinham cinco pães em casa, mas deixei para os meninos comerem. Como passamos por dificuldades, quando acho comida no lixão trago pra casa e agradeço a Deus por isso. A gente passa muita necessidade aqui”, relata a catadora.

Um dos filhos de Jaciara é Genivaldo Bezerra, de 18 anos. A pobreza faz o rapaz passar boa parte da sua juventude entre o lixo que garante o sustento da família. Atento aos objetos entulhados no local, o jovem não perde a oportunidade ao encontrar comida que pode se tornar o alimento dele e dos irmãos. Já achou frutas, fubá, arroz, feijão, macarrão e até carne. Leva tudo pra casa e não se nega a fazer qualquer tipo de trabalho em prol da família. Mas a dura realidade não ofusca os sonhos de Genivaldo. Mesmo longe da escola, o rapaz vislumbra um futuro honroso, com o mínimo de conforto e bem estar. “Como a gente passa dificuldade, sempre que acho comida procuro trazer para casa. E a gente aproveita. Mas eu penso em trabalhar com outra coisa, não quero só ficar no lixão. Posso, um dia, ser jogador de futebol”, revela o jovem.

Na casa da família, há o retrato do que é desigualdade social. Na cozinha improvisada, ao lado da estrutura de madeira onde dormem Jaciara e os filhos, as panelas quase sempre estão vazias. A cada data do calendário, paira a dúvida se a comida será suficiente até o fechamento do mês. A poucos metros dali, outros catadores enfrentam a mesma realidade. Resta aos moradores em condição melhor ajudar os mais necessitados, porém, um levantamento realizado pelo IBGE aponta que comprar fiado é a alternativa mais utilizada por quem enfrenta diariamente a insegurança alimentar.

Casa da trabalhadora descreve a realidade de pobreza. Mas adversidades não ofuscam o sonho do jovem Genivaldo - Brenda Alcântara/LeiaJáImagens

A catadora Elienai Albuquerque da Silva, 42 anos, assim como Jaciara e sua família, também convive com a insegurança alimentar. Próximo ao lixão, em uma casa simples de alvenaria, ela reside com filhos e netos. Soma R$ 800 no final do mês, oriundos do Bolsa Família e dos produtos recicláveis. De acordo com a trabalhadora, o dinheiro não é suficiente e por inúmeras vezes falta comida para ela e os familiares. Quando a fome aperta, a única saída é comprar fiado. “Chegou um rapaz me cobrando uma cesta básica que custa R$ 240. Ele vem nas casas e oferece para os moradores daqui. Até agora não consegui pagar esse valor e como estou devendo nem posso comprar de novo”, conta.

Elienai e os netos sentem as dificuldades do acesso regular ao alimento - Brenda Alcântara/LeiaJáImagens

Elienai simboliza a luta por uma vida honesta. Adversidades oriundas da pobreza e até o medo da fome não a levam aos caminhos fora da lei. No duro, mas honrado lixão, ela trabalha todas as noites na intenção de garantir o pão de cada dia “sem precisar pegar no que é dos outros”. Além de estar na esfera dos brasileiros que enfrentam esta dificuldade diária, a catadora caracteriza outra constatação do IBGE: a prevalência de insegurança alimentar moderada ou grave é maior nas casas cuja pessoa de referência é mulher, tanto em domicílios particulares (9,3%) quanto em casas com pelo menos um morador menor de 18 anos de idade (10,7%). No áudio a seguir, Elienai relata seu cotidiano em busca de comida.

Um problema social

Não há limites territoriais que impeçam a insegurança alimentar. Áreas rurais ou localidades urbanizadas estão sujeitas à incerteza do pão de cada dia nas mesas dos brasileiros. De acordo com o doutor em saúde pública e coordenador do Grupo de Pesquisa em Nutrição do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), Malaquias Batista, independente do lugar onde aconteça o problema, a falta de comida é uma mazela social e política. Referência no assunto, o especialista destaca que a falta de comida tem relação direta com a ausência de organização governamental.

“A fome hoje, necessariamente, é um problema social. No passado, era uma dificuldade natural, quando tribos africanas viviam em espaços que não tinham condições de se abastecer. Mas hoje, com a tecnologia, meios de comunicação e a capacidade de produzir e conservar alimentos, a falta de comida é, sem dúvidas, um problema político e de cunho social. É fato que também enfrentamos insegurança alimentar por questões climáticas, como no sertão, mas há meios para resolver a situação nesse contexto específico”, opina Malaquias Batista.

Fome é um problema social, cruel e claro aos olhos da população. Imagens registradas pela jornalista Areli Quirino, durante a Olimpíada do Rio de Janeiro

Reconhecendo que o Brasil avançou bastante no combate à insegurança alimentar, o doutor Malaquias alerta que, mesmo com essa evolução, é preciso continuar, de forma prioritária, trabalhando para diminuir os índices de falta de alimento. Para o pesquisador, efetivar ações contínuas e se organizar politicamente são meios eficazes para garantir o direito pela alimentação dos grupos sociais. “No fim, o que existe é o fato de que o governo e a sociedade não se organizaram devidamente para superar problemas humanos elementares, como esse direito de cidadania primário, que é dispor de alimentos. Por trás disso, está um pecado político que a história legitima, com falha na forma de organização e funcionamento da sociedade e do governo. A solução, de fato, é que a gente tenha uma política efetiva de segurança alimentar, que comprometa o governo e a sociedade, para que se chegue ao nível de consciência das pessoas. Assim, a sociedade perceberá, em definitivo, que passar fome é negação de um direito. Quando isso vai acontecer, não temos como precisar com certeza”, frisa.

Pesquisadora da área nutricional e ex-integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Sônia Lucena também reforça que a insegurança alimentar pode estar presente mesmo em áreas desenvolvidas. De acordo com ela, a acessibilidade ao alimento ainda depende, diretamente, da renda que a pessoa tem disponível, além da própria possibilidade de alcance à comida para comprá-la. “A pessoa pode morar na cidade - mesmo que ela seja muito grande e desenvolvida – e estar em insegurança alimentar pelo fato de não ter a garantia que ela e sua família sempre terão acesso ao alimento em quantidade e qualidade adequada para suprir as necessidades, sem comprometer outros compromissos importantes para a sua vida”, esclarece a pesquisadora.

Ainda segundo a estudiosa, é inegável que o Brasil evoluiu na luta contra a fome, entretanto, ela acredita que os números de insegurança ainda são altos. Além disso, Sônia contextualiza a problemática da falta de alimento com a situação histórica do País. “Nas periferias das grandes cidades e no interior ainda se concentra um percentual significativo de pessoas em condições muito precárias de vida. As pesquisas mostram uma melhora considerável nos últimos anos, no entanto, o percentual dos que não se sentem seguros para alimentar a sua família ainda é muito alto quando analisados em termos absolutos. A fome tem suas raízes nos problemas seculares que o Brasil enfrenta e sua elite nunca quis resolver. Mas tenho convicção que, se não forem alteradas algumas questões, o percentual da população ainda com insegurança alimentar será muito alto”, projeta

Morador de rua aproveita doações no Centro do Recife - Brenda Alcântara/LeiaJáImagens

Sônia Lucena também apresenta meios que podem amenizar consideravelmente os índices de insegurança alimentar presentes na sociedade brasileira. Porém, de acordo com a pesquisadora, ainda é necessário combater vestígios históricos do período de escravidão que geram desigualdade social. “Para ajudar a resolver o problema da falta de comida, podemos citar a reforma agrária, a redistribuição de renda, a melhoria na qualidade da educação e a garantia permanente dos direitos básicos constitucionais. São medidas que em diferentes países contribuíram fortemente na redução desse indicador. Mas a herança escravista do Brasil, que em alguns setores ainda se faz presente através do preconceito e exclusão social, também é outro fator forte que contribui com a banalização da fome por parte da população brasileira”, opina a pesquisadora nutricional.

Quando a cidade dorme

A pujança econômica das grandes metrópoles ainda não foi capaz de extinguir a desigualdade social. No mesmo cenário onde reinam grandes prédios executivos, empresas e órgãos que são o coração comercial das cidades urbanizadas, sobrevivem pessoas entrelaçadas na pobreza e, muitas vezes, sem auxílio do poder público. É quando se comprova o fato de que a insegurança alimentar, independente do nível, tem relação estreita com a condição de pobreza e baixa educação de quem sofre com a falta de comida.

Entre os passos apressados de quem circula nas ruas, há retratos da pobreza, muitas vezes invisíveis. Sobretudo, presenciar pessoas jogadas ao chão ou vagando pelas vias públicas em busca de ajuda, se tornou algo comum nas grandes cidades brasileiras. Sem teto e à margem do bem estar social, moradores de rua são exemplos claros do quão grave pode ser a falta de comida. Sobrevivem, muitas vezes, na dependência de doações e na expectativa de que alguém de bom coração compartilhe alimento sem nada em troca.

Nas históricas ruas recifenses, ao cair da noite, as calçadas e praças são ocupadas por pessoas sem lar. Muitas romperam contato com os familiares, não trabalham e vagam, sem destino, pelas vias públicas. Quando a cidade está dormindo, moradores dividem os minutos de descanso com os olhares atentos às ruas. Sem comida, esperam doações de ONGs e entidades religiosas, que rotineiramente levam comida e um abraço amigo aos necessitados. Tomando Recife como exemplo, a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SDSDH) estima que a capital pernambucana tem mais de 770 pessoas consideradas moradores de rua.

Moradora de rua, Ana Lúcia enfrenta a insegurança alimentar - Brenda Alcântara/LeiaJáImagens

Dos 49 anos de idade de Ana Lúcia Spinele, duas décadas são de vivência na rua. Morou no Rio de Janeiro, mas resolveu tentar a sorte no Recife. De baixa escolaridade, não conseguiu trabalho em solo pernambucano e acabou se aventurando nas ruas recifenses. Atualmente, dona Ana Lúcia vive na Rua do Imperador, área central da cidade, e sofre, diariamente, com a incerteza de que terá comida para se alimentar. Ela revela que conta com a solidariedade de alguns comerciantes que as dão comida sempre que possível, além de receber lanches semanais dos Cirineus - grupo católico que desenvolve rondas solidárias para levar comida e palavras de conforto aos necessitados.

Segundo o representante dos Cirineus no Recife, Fernando Costa, o trabalho religioso não é suficiente para acabar com as dificuldades dos moradores de rua. “A pobreza é uma problemática de todo o Brasil. É preciso que os governantes atentem para isso”, complementa o religioso. Ele acredita que a distribuição de alimentos para os necessitados por parte das instituições religiosas e organizações não governamentais não é suficiente para cobrir falhas governamentais. Para Costa, mais importante do que levar qualquer tipo de auxílio material ou alimentar aos moradores, é dar atenção humanitária. Uma vez por semana, sempre de madrugada, seu Fernando e dezenas de colaboradores ganham as ruas do centro do Recife levando solidariedade às pessoas carentes.

Na rua, cada dia finalizado representa uma vitória para quem não tem teto. A luta pela sobrevivência é contínua, não apenas pelas consequências da desigualdade social, mas também pelo medo da violência. Mas entre tantos problemas, a insegurança alimentar ainda é uma realidade que amedronta a sociedade e faz vítimas, que na grande maioria das vezes estão inseridas em um contexto de pobreza. Mas aos que têm esperança e força de vontade, o sonho por uma vida melhor se mantém vivo em meio às mazelas sociais. Aos 33 anos de idade, o morador de rua Almir do Nascimento enfrenta com bravura as adversidades e não deixa que nada ofusque seu desejo por uma vida digna.

Natural de João Pessoa, na Paraíba, Almir passou por problemas pessoais e largou a família. Teve como destino o Recife, onde alimentou a esperança de conseguir emprego para sobreviver, mas os fatos não aconteceram da forma como queria. Sem trabalho, começou a vagar pelas ruas da capital pernambucana e, para conseguir dinheiro, recebeu uma carroça de um amigo local e passou a catar materiais recicláveis. Porém, o que fatura quase sempre não é suficiente para garantir o pão de cada dia. “A melhor atitude de um homem, mesmo quando a pobreza faz parte da sua vida, é sempre caminhar pelo lado honesto. É melhor me humilhar na rua, catando lixo e dormindo no chão, do que roubar ou maltratar alguém. Do jeito que vivo, sem saber se terei comida para colocar na barriga, é muito difícil, mas mantenho a esperança que vou sair dessa vida”, relata.

Em uma noite de quinta-feira, no Centro do Recife, Almir apresenta a última refeição do dia - Brenda Alcântara/LeiaJáImagens

Almir não tem um ponto fixo para descansar. Caminha pelas ruas do Centro do Recife, cata do lixo o que dá para aproveitar e, como muitos outros moradores de rua, recebe doações. A comida é incerta, assim como seu paradeiro. Mas quando encontra marquise que pode protegê-lo da chuva, se deita e espera o dia amanhecer para, novamente, lutar contra a falta de comida. De acordo com ele, o período noturno é o mais complicado para um morador de rua, pois enquanto a população dorme confortavelmente em suas residências, os necessitados ficam jogados ao chão.