Nas palmas de suas mãos, o costureiro Adilson Antonio de Barros conjuga passado, presente e futuro. Na infância, vivida na pequena cidade de Santa Cecília, Paraíba, a vontade de estudar era grande, a necessidade se mostrou implacável. Ele precisou trocar lápis e caderno pela enxada, no intuito de aumentar a produção dos pais na roça. Aos 17 anos, Adilson comprou uma passagem só de ida para Santa Cruz do Capibaribe. “Era pesado o trabalho na zona rural. Meu primeiro emprego com costura foi numa empresa de roupas íntimas, bem pequeninha. Comecei tirando ponta de linha”, lembra.
Quando soube da existência de uma vaga para o setor de costura na Sport Company, fábrica especializada em vestuário esportivo, Adilson venceu a falta de experiência. “Eu nem sabia costurar, mas tinha a indicação de um colega e eles me deram a oportunidade, agarrei e venci. Hoje tenho casa própria, moto e ajudo meus pais na Paraíba todo mês. A costura mudou minha vida”, comemora. Adilson não foi o único a ter encontrado delicadeza na aspereza de suas mãos. Assim como ele, outros costureiros, muitos oriundos de outras cidades, desafiam a rigidez da estrutura machista do Agreste pernambucano, exercendo um papel tradicionalmente legado às mulheres.
Andros enfrentou a resistência do pai, que não aceitava seu trabalho como costureiro.
De poucas palavras e movimentos firmes, alguns desses homens têm na costura a maior herança deixada por suas mães. Andros Severino Lourenço, também costureiro da Sport Company, se iniciou na atividade aos 15 anos de idade. “Estou com 32. Minha mãe trabalhava com jeans em Toritama e me ensinou dentro de casa mesmo”, comenta. No início, Andros enfrentou a resistência do pai, que não aceitava bem seu envolvimento com a costura. “Ele era evangélico e queria que eu trabalhasse em igreja. Desde os 14 anos saí de casa, me casei e consegui tudo que tenho através da minha profissão”, exalta.
Apesar de sempre ter atuado na área, Andros relata que até hoje precisa lidar com comentários preconceituosos a respeito de sua profissão. “Dizem assim: ‘mas não é mais pra mulher’? Eu levo na brincadeira, foi o que aprendi a fazer. Com carinho e amor sempre saem boas peças”, afirma. Além da subsistência, a costura traria o maior dos presentes para Andros e sua família. “Meu irmão mais novo, Abel, tinha ido se aventurar em São Paulo. Quando eu disse que estava trabalhando na Sport Company, ele comentou que voltaria para Pernambuco se eu conseguisse um emprego para ele”, lembra. Sem pestanejar, Andros procurou a direção da fábrica e explicou a situação. “Mandaram ele vir, mesmo sem saber costurar. Hoje Abel trabalha no setor de serviços gerais e a família está reunida de novo, graças a Deus. Não pensa mais em voltar para São Paulo”, conclui.
De pai para filho
Gilmar aprendeu seu ofício em casa, com o pai.
Em Santa Cruz do Capibaribe, onde o mascote do principal time de futebol da cidade, o Ypiranga, é uma máquina de costura, existem ainda os homens que aprenderam o ofício com seus pais. “Quando eu era criança, minha família fazia as peças e vendia na feira. Meu pai costurava em uma ‘tatuzinha’ (pequena máquina de costura), foi nela que ele me deu os primeiros ensinamentos. A partir de então, sempre que eu queria comprar alguma coisa, ia para a máquina costurar”, coloca o costureiro José Gilmar da Silva. Com os estudos interrompidos ainda na sexta série, Gilmar admite que sem as pacientes lições de seu pai, conseguir um emprego seria uma tarefa ainda mais difícil. “A Sport Company é minha terceira empresa de carteira assinada, mas sonho em trabalhar para mim mesmo. Nosso trabalho é cansativo, mas é honesto e tem gerado renda para muitas pessoas. Não temos tudo que queremos, mas vamos conquistando aos poucos através da costura”, relata.
Agreste agênero
“O que antes era chocante e escandaloso torna-se normalmente aceito. O sistema que estava sendo supostamente contrariado se recupera e até pode se beneficiar do choque”.
Malcom Barnard.
Entre risadas e caretas de espanto, um grupo de trabalhadores interrompe as obras de pavimentação do centro de Santa Cruz do Capibaribe. Acomodados no interior das fendas abertas na rua, eles acabam de encontrar algo mais interessante do que o serviço. Dois rapazes barbudos desfilam em praça pública de vestido. Não é a primeira vez que as estudantes do curso técnico de vestuário do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) Ceane Silva e Priscila Guimarães convidam os amigos para a prova das peças na cidade.
“A gente já tinha feito um desfile no encerramento de um evento do Senai. As peças são resultado da disciplina de modelagem básica e costura industrial. Como tínhamos pouco tempo, optamos por trabalhar com peças agênero, pela praticidade de confeccioná-las”, lembra Ceane. Cortes retos e modelagem largada permitem que roupas simples atendam a homens e mulheres. “É uma tendência internacional, que vem ganhando espaço em capitais com Rio e São Paulo. Agora, ela está se difundindo para cidades menores. Em Santa Cruz, algumas pessoas já começam a aderir”, garante Ceane.
No artigo “Moda agênero: uma proposta de moda que desconstrói as fronteiras de gênero?”, das pesquisadoras do programa de pós-graduação em design da Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Fernanda Ribeiro Coutinho, Denize Berruezo Portinari e Janara Morena de Oliveira cravam que o conceito de agênero foi lançado no desfile de estreia do estilista Alessandro Michele para a grife italiana Gucci. “Rapidamente, o agênero começou a marcar presença em campanhas publicitárias e em editoriais de revistas (por exemplo, Vogue, Elle Magazine, Harper’s Bazaar, W Magazine e InStyle), passando também a figurar em grandes eventos de moda do chamado eixo Londres-Paris-Milão-Nova York – desde coleções de estilistas cujo traço é a ousadia e a irreverência, como a inglesa Vivienne Westwood, que também é conhecida como a rainha/a grande dama do punk, até grifes percebidas como mais tradicionais, a exemplo da francesa Givenchy”, escrevem. Ainda segundo as especialistas, no Brasil, os estilistas mais reconhecidos pela aplicação da tendência são o paulistano Alexandre Herchcovitch e o mineiro João Pimenta.
Priscila e Ceane pretendem atuar no setor agênero em Santa Cruz do Capibaribe
Na pequena Santa Cruz do Capibaribe, o trabalho de Ceane e Priscila teve uma boa recepção de pessoas ligadas ao mercado da moda. As estudantes reconhecem, contudo, que boa parte da população da cidade ainda não trata a moda agênero com naturalidade ou nem sequer ouviu falar nela. “Os mais tradicionais ainda têm um pouco de receio em aceitar esse universo, por isso esse ainda temos um público muito reduzido”, comenta. Outro desafio do trabalho com as peças agênero é o de fazer o caimento atender ao porte físico de homens e mulheres. “A gente tenta pegar uma média das medidas masculinas e femininas para colocar um padrão que vista bem os dois. A vantagem é que são peças confortáveis e mais soltas”, explica Priscila.
Priscila relata que foi a própria moda agênero que a motivou a ingressar no curso de vestuário. “Entrei com o intuito de ter embasamento na parte de produção e criação das peças. Minha ideia é a de colocar meu trabalho no mercado local para ver no que dá. São looks diferenciados, que despertam curiosidade e interesse onde são expostos”, justifica. Se preparando para concluir o curso defendendo uma pesquisa sobre a moda agênero, Ceane se mostra otimista com mercado agrestino. “Mesmo sendo pequeno, ele existe. Para se expandir, só precisa se tornar mais conhecido”, opina.