Logo após a entrada do município de Taquaritinga do Norte, no Agreste pernambucano, a movimentação dos carros aumenta, é possível perceber que ônibus e vans lotados com passageiros circulam e se preparam para estacionar em trechos estratégicos. A partir dessa cidade, a vegetação árida natural da região passa a ser substituída por cartazes, outdoors e muitas propagandas nas estradas que atraem os olhares de quem passa por lá. Moda, modelos estampando os painéis gigantes e roupas das mais variadas confecções são os principais produtos publicitários.
O contraste das propagandas com o cenário seco e a infraestrutura precária começa a ser percebida com mais facilidade. Com a proximidade da entrada do próximo município, a rodovia ganha muitos buracos, desajustes e a desorganização urbana ganha força visualmente. É uma movimentação muito intensa para uma região interiorana. Mais alguns minutos de viagem e estamos no centro da cidade de Toritama, localizada no Agreste Setentrional de Pernambuco, a 164 km do Recife. O local é conhecido como a capital do jeans, sendo o segundo maior polo de confecção ‘jeanswear’ do Brasil, responsável por 16% da produção nacional e a principal do Nordeste no segmento.
Apesar de ocupar um posto alto no setor da moda e ser conhecida no país pela importância da produção do jeans, a cidade tem uma estrutura que parece não acompanhar o desenvolvimento do setor varejista. Em grande parte, as ruas são sujas, não calçadas, o esgoto corre a céu aberto e a primeira impressão é que a desigualdade social é uma problemática conhecida de muitos anos da população que lá reside.
De acordo com dados do IBGE, houve um aumento populacional significativo na cidade, passando 21.562 habitantes no ano 2000 para 35.554 habitantes em 2010. Outro dado revela também que a cidade apresenta elevado grau de informalidade das atividades da região: 94,5% dos trabalhadores são informais. Com os níveis de produção altos, muitas vezes, a precarização do trabalho não dá garantias trabalhistas, nem acesso a mecanismos de proteção social.
Em cada esquina da cidade o cenário parece se repetir. Nas calçadas e becos, crianças, jovens, homens e mulheres se revezam no trato dos tecidos de jeans ainda no estado inicial, sem moldes. Recortam, picotam, colocam botões e pouco a pouco começam a dar vida às famosas peças mais encorpadas comercializadas no mundo todo.
Eles se distribuem em atividades de modelagem, corte e costura, de natureza mais especializada e em outras atividades como acabamento, lavagem, tingimento e comércio do jeans. Sentados no batente das residências, praticamente quase nas ruas, dentro das casas nos terraços, em empresas grandes, facções ou fábricas clandestinas, os moradores de Toritama apostam nas máquinas de costura como principais aliadas na manutenção diária do império do jeans brasileiro.
Nas motocicletas, os pilotos dividem o espaço do banco com o amontoado de tecidos que se encaixam como o passageiro carona e desafiam as leis da física para garantir o equilíbrio do veículo. Uma corda para segurar um lado, outra emenda do outro, e os motoqueiros seguem caminho transportando centenas de peças todos os dias.
Nos carros, a situação é a mesma e as malas estão sempre superlotadas com o material da entrega, que geralmente segue das fábricas para as lavanderias e é por lá que ganham mais vida. O processo de lavagem do jeans é essencial na cadeia produtiva. Nas mãos dos profissionais das lavanderias, as calças, saias ou os shorts variam de modelo, de cor e dependendo do detalhe, o custo do produto pode aumentar. A cidade praticamente vive de jeans e parece não dormir nunca.
Conhecida como a cidade do jeans, Toritama respira o trabalho e as casas são praticamente pequenas fábricas de fazer roupa
A produção no município gira em torno de seis milhões de peças nas altas temporadas – nos meses de maio e junho, devido ao São João, e em outubro e novembro, por causa do Natal. São cerca de 60 milhões de peças confeccionadas por ano, gerando aproximadamente 25 mil empregos diretos, o que beneficia a economia de municípios vizinhos como Caruaru, Surubim, Vertentes, Frei Miguelinho e Santa Maria do Cambucá. O faturamento anual chega a R$ 450 milhões.
De acordo com a análise dos dados do IBGE, é possível afirmar que existe correlação entre o rendimento no trabalho principal e a escolarização no município de Toritama. A escolarização representa um fator relevante para explicar as diferenças sociais na cidade.
É assim em Toritama há pelo menos 30 anos. Originalmente, as atividades produtivas da cidade se restringiam à criação de gado e ao cultivo de mandioca e feijão. Em paralelo, também desenvolvia um pequeno polo calçadista. Mas, a partir de década de 1980, em meio à crise econômica que atingiu o Brasil, por muitos problemas com a região seca, falta de água e o declínio do negócio dos calçados, as pessoas dessa localidade passaram a produzir e comercializar calça jeans, como uma estratégia de sobrevivência. Especialistas apontam que pelo jeans ser um tecido mais grosso e mais próximo em textura ao couro, a entrada na cadeia produtiva da cidade ganhou força. Historicamente, a população está sempre na busca pela sobrevivência financeira.
Quem percorre Toritama logo percebe o som mais frequente na cidade. O barulho das máquinas de costura, geralmente instaladas nas garagens das casas e nas salas é sintomático. O ambiente constante de produção é a marca registrada da capital brasileira do jeans. Bares, bodegas, boates, teatro, cinema e locais de lazer são poucos em Toritama. Produzir é lema. "Aqui as pessoas não ligam muito para o lazer, vivem para o trabalho, é uma indústria que não dorme e a produção é contínua, com crise ou sem crise", informa a analista de mercado do Núcleo Gestor da Cadeia Têxtil e de Confecções em Pernambuco (NTCPE), Juliana Nunes.
Na parte mais periférica da cidade, o mais comum é encontrar as unidades produtivas domiciliares, geralmente hereditárias, os famosos negócios da família. De acordo com a pesquisadora Edilane do Amaral Heleno, esses locais têm em comum o fato de serem baseadas no trabalho familiar, embora recorram também à contratação de outros trabalhadores.
"Estão localizadas quase sempre no próprio domicílio familiar ou atrelado a ele, através de ‘puxadinhos’ formando galpões, podem ser institucionalmente formalizados ou não. Também diferenciam-se em relação ao domínio do processo produtivo e ao controle do produto final, pois enquanto os fabricos têm todo o domínio do processo produtivo e controle da venda do produto final, podendo até faccionar ou servir como facção às unidades produtivas maiores em relação a etapas desse processo, as facções se caracterizam por serem subcontratadas de fábricas e fabricos e, assim, exercerem apenas algumas etapas do processo produtivo, não tendo, portanto, controle sobre a venda do produto final", destaca a especialista.
A indústria de confecções local direciona a sua produção para a linhas de peças mais populares e com o preço mais menos elevado. Geralmente, as roupas são vendidas em pequenos comércios ou nas feiras de rua, as tradicionais sulancas. Mas, o mercado do jeans também exporta para o país todo, e além de abastecer os mercados local e nacional, os produtos são vendidos para o mercado internacional.
Já no centro da capital nacional do jeans está localizado o famoso “Parque das Feiras”, um enorme shopping construído pelos empresários do município e inaugurado em 2001. É lá nesse local que os comerciantes oferecem suas peças em lojas e boxes padronizados. O espaço tem cerca de 5 mil metros de área coberta, concentrando mais de mil estabelecimentos, além da praça de alimentação, caixas eletrônicos de bancos e uma rádio comunitária ligada o tempo todo, fazendo a propaganda de lojas e serviços em geral.
O Parque das Feiras funciona de domingo a domingo, geralmente das 5h às 17h, mas a Feira do Jeans, onde milhares de barracas se reúnem na sulanca é realizada nos domingos, sempre às 14h. E é por esse tão esperado dia que os feirantes, lojistas e empresários aguardam a semana toda. Pessoas do Brasil todo se deslocam até a cidade para comprar as peças mais baratas; geralmente o foco dessas vendas são em atacado.
Jucilene Tavares acredita no futuro animador para os negócios na indústria de confecções do polo do Agreste
Na década de 1990, a empresária Jucilene Tavares, 50, decidiu que era o momento de investir em um modelo de negócio no ramo do jeans, já que Toritama estava se fortalecendo e a produção e demanda eram contínuas. Em 1997, ela inaugurou a sua fábrica e loja de forma mais precária e simples.
Eram quatro funcionários responsáveis por tudo, desde a costura até a parte administrativa. Mas, ao longo dos anos, o empreendimento se fortaleceu e ganhou novos ares. Após dez anos, em 2007, Jucilene decidiu que era o momento de mudanças e crescimento. Ampliou a fábrica Metaurus Jeans Wear em estrutura, produção e deu mais à vida a marca. Atualmente, a empresa comercializa vestuários em jeans de forma geral. Em 2018, a fábrica conta com mais de 40 funcionários e tem a loja instalada no centro da cidade, além de participar ativamente do polo de confecção nos dias de feira na cidade.
Mas, com o agravamento da crise econômica em 2015, houve um período de interrupção de sete anos do crescimento de diversos setores do Brasil. Após três anos, em 2018, Jucilene sentiu o efeito da queda de vendas e tentava diariamente reinventar seu negócio para mantê-lo aquecido. “Nesses últimos anos o fator econômico afetou demais a nossa empresa. As vendas reduziram demais e os encargos continuaram os mesmos. A gente precisa de um incentivo maior dos nossos políticos para que voltemos a crescer. Eu não sou sozinha, tenho 40 funcionários que dependem de mim e eu dependo deles. Preciso ter clientes para que a gente possa voltar a crescer e sustentar Toritama”, adverte Jucilene.
A costureira Josenilda Maria da Silva, 33, diz que conheceu o segmento ainda jovem, aos 16 anos, e foi ensinada a costurar por uma amiga. Desde então, vive em Toritama do ramo da moda e espera dias melhores no futuro já que a cidade precisa da venda do jeans para sobreviver. “Aqui todo mundo trabalha com isso, são dez, doze horas trabalhando ou até mais. As pessoas gostam de trabalhar aqui, não tem corpo mole, homem ou mulher, a máquina de costura e o jeans são nossos companheiros diariamente”, acredita a pernambucana.
Com o jeans no circuito da produção e comercialização de confecção local no fim da década de 1980, observou-se a implantação de uma série de lavanderias em Toritama e em Caruaru, ambas no Agreste pernambucano. Nas lavanderias é onde é realizado o processo de lavagem, amaciagem, tingimento e descoloração do jeans.
Maquinário da área molhada na Lavato Lavanderia
A lavagem exige muita água e muito combustível, no caso, a queima de lenha para o funcionamento do maquinário. Toritama está localizada às margens do Rio Capibaribe, que na maior parte do ano é um leito seco e por isso cerca de 93% da água utilizada pelas lavanderias do município vêm da compra em carros-pipas, cujo trajeto é a Barragem do Jucazinho, na própria cidade. É comum observar na “cidade do jeans” o trânsito de caminhões carregados com lenha, combustível que alimenta as caldeiras das lavanderias e os grandes carros-pipa.
O processo de industrialização do jeans envolve, entre outros insumos, uma demanda significativa de água. Estima-se que em Toritama são confeccionadas 800 mil peças por mês e que, para cada peça produzida, são gastos de 10 a 40 litros de água. Isto significa que, em um único mês, são consumidos na lavagem da confecção por volta de 32 milhões de litros de água. Essa situação assume proporções maiores quando se observa que Toritama está entre os municípios pernambucanos que apresentam maior escassez de água.
Homens trabalham no setor de coloração do jeans
Há treze anos, a Lavato lavanderia, que fica localizada no Centro de Toritama, atua no ramo da lavagem do jeans. O serviço ocorre por 24 horas e conta com 70 funcionários trabalhando em várias etapas do processo até que o jeans seja moldado exatamente como os empresários desejam. Nos corredores da fábrica, o lema é trabalho. Na área molhada, onde estão localizados os maquinários mais pesados, o cargo é essencialmente disputado entre homens. No local onde o jeans é engomado e passado, as mulheres são mais procuradas. De acordo com Bruna Ferreira, gerente da lavanderia, a produção mensal de lavagem é de 170 mil peças, com capacidade para lavar até 200 mil peças.
Uma tarde na “facção”
Na “capital do jeans”, a indústria está diluída em casa, onde famílias inteiras e seus vizinhos ou conhecidos tiram o sustento da costura. Quando o dono de uma fábrica de roupas conclui que sairá em “desvantagem” financeira se contratar mais costureiros, ele costuma doar boa parte das máquinas a um funcionário de confiança. A ele ou ela, caberá a missão de gerir uma parte do processo produtivo em seu ambiente familiar a partir de uma mão de obra que lhe caberá selecionar. Assim, uma enorme cadeia de células produtivas sustenta uma indústria multimilionária.
Curiosamente conhecidas como “facções”, esses estabelecimentos irregulares, em 2017, eram pelo menos 193 (registrados) no Estado de Pernambuco e responsáveis por 13% do volume de vestuário produzido no Polo de Confecções, segundo a mais atualizada Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e a Inteligência de Mercado Ltda (IEMI).
A reportagem do LeiaJá teve acesso a uma das casas que se tornaram facções em Toritama. Na mesma rua, existiam outras três em formato muito parecido: a garagem frontal das casas virou estacionamento de fileiras de máquinas de costuras e peças de jeans a serem armadas. “Em todas as facções, o trabalho é montar as peças, que vem do fabricante soltas. Somos como uma empresa terceirizada, que é procurada para realizar alguma das fases do processo produtivo do jeans. Uma mesma peça pode passar por várias facções antes de ficar pronta, cada uma cuidando de um detalhe diferente”, explica o costureiro Fernando Ferreira, que coordena uma facção com sua mãe, ex-funcionária de uma fábrica.
Fernando emprega amigos e vizinhos em sua facção
Segundo o IEMI, as facções já empregam 1,3 mil trabalhadores em Pernambuco, a maior parte deles (68%) com ensino médio completo, mas apenas 0,8% são graduados no ensino superior. Há dez anos, antes de sair do antigo emprego na fábrica, a mãe de Fernando negociou com o antigo patrão e recebeu as máquinas com as quais trabalha. “Hoje eu tenho 26 anos e trabalho na facção desde o tempo em que ainda estava na escola. Meus estudos não foram prejudicados, porque sempre pude adaptar meu horário de trabalho ao das aulas. Acabou sendo melhor, porque certos cursos que eu fiz, não teria conseguido sem um horário flexível”, defende o costureiro.
Além do núcleo familiar de sua mãe, a facção acomodada na casa de Fernando emprega amigos e vizinhos. “Tem costureira minha que bate um salário mínimo por semana, sem ter feito nenhum curso ou faculdade. O fabricante, por exemplo, me paga R$ 4 por peça, para um total de 500 unidades. Diferente da maioria das empresas, aqui não existe uma pressão por produtividade, cada uma ganha por peça produzida”, afirma. Além disso, Fernando garante que suas costureiras não trabalham nos finais de semana ou na manhã de segunda. “É algo que nem posso mudar, já está certo para elas. Além disso, para algumas mulheres de Toritama, trabalhar dessa forma na costura é vantajoso porque elas podem permanecer em casa, cuidando dos filhos pequenos. O que importa é que dão conta da demanda”, completa.
O preço a ser pago pela conveniência, contudo, é alto. Aproximadamente aos 35 anos de idade, é comum que os costureiros das facções vejam a aposentadoria como algo impossível, em um contexto de vida que inclui nove, dez ou até onze horas de trabalho a depender da demanda. “Elas ganham por peça, preferem trabalhar muito para entregar mais unidades”, explica Fernando. Assombrado pelo fantasma da informalidade, ele não pretende se acomodar no setor. “No começo, você só pensa no dinheiro, começa a ganhar e não se preocupa. Os anos de trabalho que já perdi na aposentadoria não vou recuperar, mas pretendo acabar meu curso e me colocar no mercado em breve”, confessa.
A desconfiança dos membros das facções com a imprensa e os forasteiros é grande. Após visita a Toritama, um dos principais veículos de comunicação do país taxou que os postos de trabalho das facções eram similares aos de trabalhadores em situação de escravidão. Desde então, cresceram a animosidade e o receio de boa parte da população com desconhecidos e jornalistas. Mais discretas ainda, as costureiras passaram a depender de grupos no Whatsapp para conseguir bicos em facções ou para que os próprios estabelecimentos informais se conectem.
Comunicação das facções com as empresas parceiras se dá de forma informal, pelo whatsapp
Um ciclo
Em muitos casos, quando uma facção começa a receber muitas peças, ela acaba se dividindo em outra. Pessoas que preferiram não se identificar relataram à reportagem que antigos donos de facções de Toritama tornaram-se milionários donos de fábricas, após se apropriarem completamente do processo de produção do jeans. Uma vez pesada demais a demanda, eles repetiam o ritual de transferir parte das máquinas de costura a um funcionário de confiança.
Em facções como a de Fernando, parte do processo é duplamente terceirizado. “Por exemplo, existe uma máquina só para colocar o cós do jeans, mas ela custa cerca de R$ 8 mil. Para mim, não vale a pena comprar esse equipamento, mas também não vou perder o cliente. Então repasso para uma outra facção que só faz isso e me responsabilizo pelo resultado. Essa empresa coloca cós nas unidades de outras vinte facções”, comenta.