Nos pés do povo: as raízes de quem trabalha costurando sapatos

Sapateiro luta para continuar com a tradição da família. São décadas de amor e dedicação à profissão

Somando já 45 anos vestindo os pés do povo, o artesão sobrevive com o dinheiro que tira dos consertos e encomendas. O local de trabalho já não é o mesmo da infância, mas as técnicas aprendidas com o pai sim. No quartinho ao lado de sua casa, no bairro de Água Fria, na Zona Norte do Recife, o que mais se vê são calçados. O negócio é voltado ao conserto de calçados masculinos e femininos, além de malas e outros artigos de couro. Espalhados por todos os cantos, prateleiras e armários, os objetos de trabalho de seu Carlinhos, como é conhecido pelos vizinhos, somam dedicação e entrega à profissão de sapateiro. 

 

Às dezenas, os pares formam um tapete sobre o chão de cimento. Pequena e humilde, a sapataria é o lugar da casa que ele mais gosta de ficar. Pelas paredes, estão as marcas dos 30 anos instalado ali, logo depois que casou. Prestes a completar 60 anos de idade e 46 de profissão, José se senta em um banquinho de madeira e procura um sapato entre tantos outros que estão no chão. Colocando uma mão dentro do calçado, ele encontra onde está descolado.

1/3

Com muita agilidade e paciência, o sapateiro vai enfiando a agulha em cada canto das laterais do solado para puxar o cordão sob sua mão dentro do tênis. O trabalho tem que ser eficiente, rápido e habilidoso. Cada segundo que perde é um conserto a menos.

Ele pega uma espécie de faca na caixinha em cima do balcão, onde está também as outras ferramentas do trabalho e começa a amolar a ponta da lâmina. Cortes precisos são feitos na parte da frente do calçado para facilitar a costura.

 

Carlos é dos tempos, e da classe social, em que as crianças aprendiam desde cedo uma profissão. O dia para o sapateiro começa logo cedo às 4h30 da manhã e só encerra quando escurece. O que para muitos pode ser visto como uma rotina exaustiva, ele considera como um prazer.

As lembranças do pai marcam a vida e a história de José Carlos Pereira da Silva, que aos 14 anos de idade viu na tradição da família humilde a esperança de um futuro reconhecedor. Nascido no dia 7 de setembro de 1958 e criado na cidade do Recife, era do quarto de sua casa que ouvia o pequeno som do rádio na garagem tocando, já depois da meia noite. Enquanto se organizava para dormir, do outro lado da parede, o artesão de sapatos - ofício antigo também conhecido como sapateiro, seu pai, trabalhava incansavelmente para dar conta dos serviços do dia seguinte. 

Cuidando da demanda sempre sozinho, o responsável pela família precisou passar os conhecimentos da profissão ao filho para que pudesse lhe ajudar com os consertos e encomendas dos calçados. Ao mesmo tempo que terminava os estudos no colégio, para construir uma carreira profissional, na oficina do pai e em casa o jovem costurava sem saber a maior riqueza da sua vida: a sapataria.

Os primeiros contatos com a profissão começaram ali. Cada detalhe e técnica foram repassados de pai para filho, que sonhava um dia ser famoso. Já maior de idade, José trabalhou em grandes fábricas espalhadas pelo Brasil. Viajou do interior do Nordeste ao Sul do país, adquiriu conhecimentos, conheceu grandes empresários, mas nunca deixou seus serviços de casa. Fazia dois turnos e, quando dava, ainda trabalhava nos fins de semana para ganhar uma renda extra. 

A trajetória do filho do sapateiro não foi nada fácil. Ainda muito novo perdeu seus pais e resolveu ir trabalhar com outras coisas. Ao ponto de abandonar de vez as raízes da família, a convite de um amigo, ele retornou com os atendimentos em casa. Logo,  entregou-se de vez ao “dom”, como ele mesmo chama, de costurar, colar e fabricar sapatos. 
 

Apoiando o pé descalço em uma madeira fincada no chão, que se mistura em meio aos sapatos, seu Carlinhos conta que o sonho de ter reconhecimento foi realizado. “Aqui onde moro sou famoso, era tudo que queria. Todo mundo me conhece, conhece meu trabalho e ainda dão valor a minha profissão”, comenta o sapateiro que já termina o conserto do sapato para pegar outro.

 

Juntamente com sua primeira esposa, José Carlos criou os cinco filhos com o dinheiro da sapataria. Há oito anos, José Carlos ficou viúvo e hoje mora sozinho. Ele até se casou depois, mas não deu certo.

 

Sua responsabilidade atualmente é só com a sapataria. O tempo que passa costurando, é o tempo que também se dedica a profissão da sua vida. O movimento ainda é mantido por conta da garantia do serviço. A qualidade do trabalho do profissional impressiona os clientes, que acabam voltando e trazendo mais gente.

O dinheiro que ganha no mês com todos os serviços oferecidos, geralmente, bate a casa dos R$ 2 mil. Seu Carlinhos ainda não é aposentado e todo dinheiro que precisa para pagar algum medicamento vem da profissão.

 

“Meu filho fica arretado comigo porque eu não saio daqui de dentro. Eu gosto de ficar aqui. Aqui, mesmo eu tratando o freguês mal ele volta. Porque ele sabe que o trabalho é bom. A pessoa tem gostar do que faz, rapaz. Não é só pelo dinheiro não.Se for pelo dinheiro você nunca vai ficar feliz com sua profissão. Você tem que ter o dom, saber conversar e conquistar o freguês”, comenta.

 

Os cinco filhos que teve, nenhum quis seguir o ofício, como aconteceu com os antecessores da família. A tradição da família não seguiu adiante. Mesmo assim, o compromisso com suas raízes é admirável. Com os olhos marejados, ele diz:

“Pra mim é tudo. Até o resto da vida agora ou até enquanto eu puder trabalhar, né. Eu não fazer outra coisa a não ser ficar aqui dentro e consertar sapato”.

Para contratar os serviços de José Carlos, os contatos são:

Ofício ameaçado

 

Apesar de tanto esforço, a cada ano, ele vê a profissão de sapateiro diminuir e os serviços também. O uso cada vez maior de sapatos feitos com materiais simples e a crescente oferta de novas opções no mercado reduziram significativamente a quantidade da freguesia. É o que justifica José Carlos. Um outro fator seria que a maioria dos filhos dos sapateiros não continuassem com o ofício da família e com o tempo, acaba levando os profissionais que restaram.

— Tá se acabando, porque tão morrendo. Os sapateiros bons estão morrendo. Pra você ter uma ideia, dentro de um fábrica de... de 50 pessoas trabalhando, só tem 3 ou 4 profissionais. O resto é tudo gente como você, como qualquer pessoa pode chegar e trabalhar lá. (risos).

Mesmo assim, ele defende e tem esperança que novas pessoas entrem na área para trabalhar. “É uma profissão que exige muito de você, mas é algo tão maravilhoso de fazer. Eu amo isso aqui. Me sinto realizado”, conta emocionado. O trabalho de Carlinhos vai além do simples calçados. Ele também se dedica a costura de botas específicas para quem possui algum tipo de deficiência física, pois, foi a alternativa que encontrou para conseguir tirar um trocado no fim do mês.

 

Apesar disso, José não trabalha nos finais de semana como no começo. “A freguesia não anda muito boa” para ele. Os melhores meses da venda é sempre entre dezembro e fevereiro, por conta das festas de fim de ano e do Carnaval. A cartela de produtos vai desde uma sandália de dedo a botas de fantasias, com preços que variam de R$ 5 a R$ 200, começando por um conserto até uma possível encomenda.

 

Enquanto vai costurando, dois clientes chegam para pegar as encomendas e outros três para pedir um conserto. O dia parece agitado e pouco comum na rotina de quem luta há 45 anos para continuar no mercado de trabalho.

Além disso, ele afirma que não é qualquer pessoa que pode ser um sapateiro. "Não tem curso, não tem faculdade pra isso, não tem nada. O que tem é a vida e a prática para lhe ensinar. E também só aprende quem tem o dom, isso não é apenas uma profissão, é uma arte”, aponta.

 

Por conta dos processos de industrialização e do surgimento de novas máquinas, a confecção dos calçados se torna mais fácil e, consequentemente, a profissão de sapateiro vai desaparecendo.

— Quando eu entrei numa fábrica de sapato pra trabalhar, minha filha, a gente fazia 45 pares de sapato por semana. E na época eu já era ligeiro, né. E da última vez que eu saí da fábrica, a gente já tava fazendo 150 par por semana.

— Eu acho que cada profissional, ele tem por obrigação ser bom no que ele faz. Caprichar no que ele faz, né.