Um alfaiate dentro do esquecimento

Referência em elegância, profissão que deixou marcas no passado não enxerga o futuro

A entrada da pequena casinha no bairro de Casa Amarela, na Zona Norte do Recife, onde funciona o ateliê do costureiro José Inaldo Barbosa da Silva, 63 anos, pouco revela do que se pode encontrar ao atravessar a porta. Depois de uma pilha de caixas e sacolas enormes cheias de tecido, chegamos à sala de costura e oficina, local onde ele mesmo produz as peças sob medida para homens.

Em meio aos retalhos de tecido, linhas e agulhas, seu Zezinho, como é conhecido, se senta próximo à máquina de costura e começa a montar algo que parece ser um colete. Com poucas janelas no local de trabalho e apenas um ventilador na sala, cada gota do suor que escorre pela sua testa revela os anos de dedicação e esforços feitos pela paixão da sua vida: a alfaiataria.

Há mais de 40 anos, esse é o som que vem compondo a história do seu José. Nascido no dia 7 de setembro de 1956, desde a infância o morador do bairro de Casa Amarela aprendeu cedo o verdadeiro sentido do trabalho. Aos 12 anos, o menino já ajudava o seu pai, que era alfaiate, com as encomendas de roupas e ajustes nas peças. Juntamente com seus quatro irmãos, ele passava horas ao lado do pai em casa para aprender os detalhes da costura e dar conta dos pedidos da clientela.


Profissão surgida no final da idade média, a técnica da alfaiataria remota a uma época singular, quando as roupas eram produzidas sob medida por profissionais específicos. Diferentemente dos costureiros tradicionais, o alfaiate normalmente costura só para homens e cada peça é produzida especificamente para aquela pessoa. Nesse contexto, a preocupação é muito maior com o acabamento das peças. Revelando cortes impecáveis e costuras de excelência.
 

Quando aprendeu a costurar, seu Inaldo recorda dos momentos ajudando seu pai com os irmãos. A necessidade naquela época era grande, todos os cinco filhos precisaram aprender a técnica para facilitar o trabalho da família. Juntos, eram cobrados pelo chefe da casa quanto a qualidade das peças. “Qualquer coisa que a gente fizesse de errado ele ficava revoltado. Apanhei muito também. Ele era muito exigente nas costuras”, revela o sexagenário.

Durante anos o pai de seu Zezinho, que era professor de costura e dava aulas, precisou do reforço dos filhos para continuar trazendo sustento para casa. “Era uma batalha muito grande ser alfaiate naquela época, a situação não era muito boa, era sofrido ser costureiro. Tinha dias que meu pai precisava entregar tantas encomendas que ficávamos com pena dele”, relata o morador do bairro de Casa Amarela.

Foi daí que a alfaiataria entrou de vez no sangue da família e começou a fazer parte da rotina de cada um.

O menino de 12 anos de idade acabou descobrindo o gosto pela profissão, se rendeu ao trabalho e ao desejo em seguir os passos do pai. A paixão pela alfaiataria foi tão forte  que o fez desistir da escola ainda no ensino fundamental. “Oxe, quando comecei a costurar não queria mais saber do colégio. Até ia, mas não queria saber de estudar. Só queria costurar, costurar e só me interessava por isso”.

Largar os estudos só fez aumentar a dedicação do jovem pela alfaiataria. Sem concluir o ensino médio, apenas sabendo fazer pequenos cálculos, aos 20 anos José Inaldo já produzia as próprias peças.

Enquanto vamos conversando, ele não se cansa e suas mãos não param nem por um segundo de costurar. Os sons das buzinas dos carros passando na rua atrapalham um pouco a nossa conversa e seu Inaldo tenta falar mais alto do que pode, mas é em vão. Molhando a ponta de uma linha na língua, ele começa a tentar colocá-la na agulha da máquina para continuar a peça. Juntando os pedaços demos cortes já fica visível a montagem do colete.

Como no início da profissão ainda não existiam as máquinas industriais e por muito tempo muitas pessoas não tiveram acesso ao equipamento, todo o trabalho era feito à mão. É nesse momento que aproveito para lhe perguntar sobre as suas costuras e ele comenta o quão exaustivo era o trabalho naquela época por conta disso. “Olhe, minha filha, a gente passava horas para terminar um paletó. Eu lembro bem o quanto furei minhas mãos com a agulha e os calos que criei por causa da tesoura. Era um sofrimento, mas se a gente queria ter o que comer, tinha que trabalhar”, desabafa.

Quando conheceu sua esposa, seu José já era alfaiate. Segundo ele, a mulher sempre achou bonita a profissão do marido e sempre o apoiou. “A única coisa que irritava ela era quando eu fazia serão”.

— Ela reclamava quando eu passava a noite trabalhando, amanhecia o dia. Ela queria que eu no mês de dezembro, fim do ano tivesse em casa, mas muitas vezes eu não estava. É porque era pra entregar os serviços. Aí a gente tinha que fazer aquele serão Pra ganhar um dinheiro a mais para comprar alguma coisa para os meninos. É isso que a profissão... ela espreme a pessoa dessa maneira. Porque você pra ganhar um dinheiro a mais, você tem que trabalhar mais.

“Muitas vezes eu ainda chego aqui de 6h da manhã, quando é meio dia, eu largo e vou mebora pro outro serviço e ainda quando largo de lá volto pra cá. Se não, não pago as contas de casa. Por conta desse meu esforço, tenho calos nas mãos e marcas de furadas que levei por conta do trabalho. O calo é por causa da tesoura, mas é um calo bonito. Eu acho. É uma regalia da minha dedicação”.

Apesar de tanto tempo na profissão, o alfaiate dificilmente costura algo para ele próprio. Quando era mais novo, a vaidade era maior, mas com o tempo, isso ficou para trás. A única peça que se lembra de caprichar foi o seu paletó. “Eu mesmo que fiz a minha roupa do casamento. Não tenho mais porque dei, mas eu caprichei muito nele, afinal era uma ocasião especial e nada melhor do que eu mesmo para costurar meu terno”.

Infelizmente, em 2016, seu Inaldo descobriu que estava com diabetes. E isso só fez redobrar ainda mais o cuidado com as agulhas, tesouras e alfinetes. Mesmo assim, o amor pela profissão e o carinho só cresceram de lá para cá. Confira:

O alfaiate, hoje com seus 63 anos, tenta enxugar o suor que escorre pela sua testa e relembra do quanto se esforçou para sempre dar o melhor de si e conseguir atender a todas as demandas dos clientes.  Logo após a morte de seu pai, de todos os cinco filhos, ele foi o único a continuar com a profissão. “Eu trabalhei muitos e muitos anos ao lado do meu pai. Eu acredito essa profissão foi uma herança dele para mim”, acredita seu Zezinho com os olhos vibrantes.
 

Passado e presente da profissão

Alfaiataria no sangue da família

Por mais que seu pai, tios e irmãos tenham tido uma vida sustentada pela alfaiataria. José Inaldo nunca quis levar a profissão para a vida dos filhos. Ele revela que quando os dois filhos nasceram e foram crescendo ele sofreu um pouco porque precisava trabalhar muito para sustentá-los e por isso não esteve presente em muitos momentos dos filhos.

“Eu nunca quis que meus filhos tivessem a mesma vida que eu. Ainda bem que eles sempre quiseram estudar, não podia prendê-los aqui. Por que é uma profissão assim, que a pessoa trabalha de domingo a domingo, não tem folga, não tem feriado, nem muito menos férias. Não tem nada, é só trabalho”, avalia seu José.

Porém, mesmo com a decisão dele, os filhos e netos já estão se aproximando da área. Ele conta que o filho mais velho estar pensando em investir nos negócios do pai e inclusive melhorar o espaço que hoje seu José trabalha. Além disso, um de seus netos, que ainda é criança, quando chega no ateliê fica querendo aprender a costurar e mexer nas suas coisas. Quanto a isso, seu Inaldo diz “há, se ele quiser aprender, eu vou ensinar, mas espero que ele prefira estudar e seguir outra carreira”.

Para seu José a parte mais difícil dessa vida foi quando ele sofreu um acidente dentro de casa e teve uma queimadura na perna que o impediu de andar por longos dias. Durante esse processo de recuperação, essa foi a fase mais emocionante da vida do alfaiate. Uma superação.

“Eu me lembro que tinha de entregar vários ternos de um casamento que aconteceria na mesma semana, e mesmo doente e sem poder me locomover muito bem, eu trabalhei com todas as minhas forças para fazer valer o meu serviço e cumprir o combinado com meu cliente”.

Apesar de tantos desafios ao longo desse tempo na profissão, ele nunca pensou em largar a alfaiataria. “Mesmo que hoje eu tivesse a oportunidade de estudar, eu não ia querer seguir outra carreira. Construí minha vida em cima das minhas costuras e sempre quis isso aqui. Nunca quis não largar não”, esclarece seu Inaldo que atualmente trabalha também como costureiro em uma loja de marca em um shopping da cidade.

No seu ateliê, hoje ele faz tudo sozinho. O alfaiate reclama da falta de um companhia durante o expediente. O silêncio parece trazer uma solidão maior do que vista no atêlie. Seu Zezinho se apega a tesoura para cortar alguns fiapos do colete que costura e lamenta.

“Seria tão bom ter uma pessoa por perto, porque fica conversando, fazendo o serviço mas você não fica sozinho”.

“É um desafio ser alfaiate. O mundo mudou muito desde a época que éramos vistos como uma profissão gloriosa. O conceito das pessoas é outro hoje. Naquele tempo, a profissão era muito valorizada, mas com o passar dos anos estamos sendo esquecidos. O que antes era feito à mão, na atualidade foi substituído por maquinário específico”, nesse momento é perceptível a tristeza na feição de seu rosto.

— Eu escolhi essa profissão porque eu gosto dela, amo. Tenho muito amor por ela e não queria que ela se acabasse, assim como tá se acabando. Como uma doença. O valor é pouco...que dar. Aí, o...o...Muitas pessoas não dão valor. Poucas dão valor.

Com a voz já embargada, o alfaiate de Casa Amarela diz que a profissão está sendo deixada de lado. “Estamos sendo esquecidos. Eu sinto falta de mais alfaiates no mercado. Se eu for contar, só devo conhecer dois, o resto já morreu. Mesmo assim hoje é muito mais fácil ser alfaiate por causa da internet. Você aprende as coisas ali, vê vídeos, tem as máquinas para ajudar” e continua...

Arrastando a cadeira, ele se levanta para passar o ferro na peça que parece ficar pronta. Antes de ser perguntado novamente, o senhor de 63 anos reclama das costuras de hoje em dia. Para ele, as máquinas dão uma “ajudinha” nas montagens das roupas, mas ainda assim o acabamento perfeito só vem na mão. “Tem sempre que alinhar a peça na mão antes de jogar na máquina. Eu tenho um enorme cuidado com cada coisa , quero deixar tudo perfeito para meu cliente”, comenta seu José.

Na alfaiataria há mais de 40 anos, o profissional remete o apreço das peças ao carinho e amor à profissão. “De primeiro, se um alfaiate fizesse uma calça que a costura ficasse troncha, era um escândalo. Uma bainha de calça que fizesse mal feita, oche, aquele alfaiate estava atolado”, brinca seu Inaldo.

Ele ainda lembra que na época havia muitos caloteiros. “As pessoas faziam os pedidos, levavam e não voltavam para pagar. Hoje em dia isso não acontece mais, mas o grande problema é que os clientes não querem mais esperar 15, 20 dias para fazer uma prova na roupa. Hoje o povo compra uma roupa pronta, não olha as costuras da roupa. Muitas vezes a costura está uma perna de um lado e a outra de outro”, enfatiza.

Dificuldade não impediu que seu trabalho continuasse

— Mas tem uma coisa viu, costurar todo mundo sabe, pegar numa máquina, sabe costurar. Mas ter o dom é diferente. É uma coisa que vem divina mesmo de Deus, mesmo. Dar pra pessoa, sabe! Eu graças a Deus, eu tenho o dom. O povo que diz, né.

Com os braços já cansados de tanto alinhavar os tecidos, seu Inaldo vai respirando fundo e procurando forças para continuar o serviço, que exige muita disciplina e atenção. Para ele, tanto o passado como o presente da alfaiataria têm seu lado difícil. 


“Antigamente a nossa dificuldade era a costura feita a mão, não existiam as máquinas. Mas ainda assim, os pedidos eram muitos. Não parava um segundo. Já hoje, temos as máquinas que agilizam todo o nosso trabalho, mas o mercado não está bom”, relaciona.


Sempre com seu lado difícil e grotesco, a profissão requer segredos que só o tempo pode revelar. “A alfaiataria é como uma faculdade. Quanto mais o tempo passa, mais se aprende. Você não aprende tudo de uma vez. A roupa ela tem uns segredos, na gola, no ombro... tudo isso. E se não soube fazer direito, ‘vixe’, é um problema”, sorri ao fazer o comentário.


Segundo seu José, se for para aprender, tem que se dedicar de verdade. Não só pela metade. O costureiro nunca sequer fez algum curso. Aprendeu tudo na prática, com os próprios erros e acertos. Após tantos anos de experiência nas costas, hoje ele lamenta a escassez da profissão.

Atualmente, em média seu José tira por mês cerca de R$ 4 mil, fora o salário que tem na outra empresa. “Eu acho que vivo bem. Hoje eu me sinto um milionário, por que tem gente que não se conforma com o que tem. Não agradece a Deus e eu agradeço sempre. Agora também que só ganho isso porque trabalho dobrado” esclarece o senhor de 63 anos que vai se aposentar no próximo ano.

O alfaiate faz desde um remendo em uma peça de roupa a paletós e coletes. Os preços dos seus trabalhos variam de R$ 15 a R$ 2 mil, a depender do serviço. Para encontrar o ateliê dele é só entrar em contato pelo telefone ou se guiar pelo endereço.