Em dias de muito corre corre e agitação, são raras as pessoas que param para observar o trabalho de um relógio. Condutor da vida de muitos, o medidor de tempo marca os segundos, minutos e horas desde a antiguidade. Historicamente, eles passaram por diversas transformações e modelos até chegar nos dias de hoje. Entretanto, algumas pessoas já nem os usam mais como acessório. Preferem olhar a hora no celular ou em outros meios mais “modernos”. Mas é graças ao pequeno grupo que ainda o tem, que Alcides Gomes da Silva, 64, continua no ramo de consertos e reparos das máquinas há mais de quatro décadas.

O homem que faz os outros andarem no horário não tem pressa. Sem atrasos ou adiantamentos, o profissional trabalha de segunda a domingo, com o maior prazer da sua vida: a relojoaria. Consertando e cuidando das peças, muitas vezes raras, Alcides acredita que o segredo da profissão está na paciência, no estudo e na concentração.

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O relojoeiro viveu sempre embalado pelo tic-tac dos ponteiros, começou a explorar a arte da relojoaria antes mesmo dos 14 anos de idade juntamente com o pai. O talento em tratar das minúsculas peças foi passado pelo genitor, que o criou fazendo relógio. Enquanto trabalhava em outras lojas de conserto, nos fins de semana, o tempo que tinha livre ajudava o chefe da casa na oficina instalada no bairro da Macaxeira, no Recife.

 

O jovem terminou os estudos, se formou em Contabilidade e começou a administrar os negócios da família. Mesmo após a morte do pai, o ofício ficou. Alcides abriu mão da carreira de contador e seguiu o mesmo caminho do seu referencial. Ele conta que até chegou a abrir um escritório, mas a paixão pelo tiquetaquear dos ponteiros falou mais alto.

Nas paredes da loja, hoje localizada dentro do Mercado de Casa Amarela, na Zona Norte do Recife,  estão os instrumentos que orquestram a sinfonia do ambiente. Dentro do espaço, há relógios por todos os lados e para todos os gostos. Tem de parede, pulso, corda, cuco, ou automático. Volta e meia ele ensina como funciona. “Esse aqui é do modelo contínuo, ele não para. Já esse é um quartzo, tem o segundo mais preciso”, explica.

Relojoeiro: a evolução do tempo para quem aprendeu a viver com ele

Profissional presencia a cada segundo os últimos momentos da arte de consertar relógios

– A gente vai se apegando e vai arrumando compromisso. Vai aumentando, né, compromisso da gente com os clientes. Chega num ponto que a gente tá envolvido e não pode deixar mais de jeito nenhum. Porque graças a Deus é um conhecimento muito grande. Vem gente até de outros estados, outros bairros. Tudo pra cá. Eu não sei se é destino, né. Eu não sei. Sei que eu continuei graças a Deus. Procurei me atualizar, me aperfeiçoar, ajeitar a loja... ter coisas também para vender, de acessórios para relógio. E todo vivendo até hoje.

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O espaço do trabalho é bem pequeno, mas bastante iluminado. Dentro, além do dono, trabalham mais quatro pessoas: três funcionários e um primo, que também seguiu no ofício da família. Na oficina estão relógios antigos de parede para restauração. No cantinho, por trás da vitrine da loja, quatro medidores aguardam o ajuste em seus ponteiros para voltar a funcionar.

 

Normalmente, o preço do conserto pode chegar a custar muito caro. Mas Alcides também conta que as pessoas pagam o valor pelo significado afetivo da máquina. "São relíquias, presentes e peças que contam história das famílias”, afirma.

Apesar de não faltar clientes, muitos fiéis ao nome do pai e já reconhecedores do trabalho da família, o trabalho já não é mais o mesmo. Os dias já são outros para a profissão que, por muitos anos, foi vista como o socorro do tempo.

Futuro incerto da profissão

 

Alcides garante que o tempo já deu cabo do acessório. Acostumando com os modelos mecânicos, agora o profissional só ouve os bips dos telemóveis e dos relógios a pilhas. Ofício que exige inúmeros segredos e prática, o amor a arte da relojoaria talvez não vão fazer parte da vida dos mais novos. Além disso, tão cedo não haverá quem saiba acertar o tempo.

 

A cada segundo que se passa, o profissional que aprendeu a conviver com o tempo, escuta os últimos momentos da arte que escolheu seguir. Incerto sobre o futuro, ele diz: “Eu espero que meus filhos continuem com isso aqui, mas se não… eu não acredito no futuro da relojoaria para ser sincero. Os que sabem mesmo é da minha geração, que já estão indo embora. E é por isso que acho que os relojoeiros são uma espécie em extinção”, desabafa seu Alcides.

Orfanato dos relógios

 

Mas, se por um lado o ofício enfrenta tantos problemas, o profissional de 64 anos confessa que se sente realizado quando pega relógios mecânicos com mais de um século. Ele sabe que tem nas mãos um tesouro, seja pelo valor de mercado ou pelo sentimental.

 

Em sua casa, por exemplo, Alcides coleciona os relógios mais antigos que já passaram por suas mãos. Alguns estão lá para conserto, outros por esquecimento. De tão antigos, eles são deixados para ajustes e acabam esquecidos pelos donos. Com pena de dar um fim, o relojoeiro guarda cada medidor na esperança de que um dia alguém retorne para buscá-los.

 

Quando há algum relógio de grande porte que precise de um ajuste, o conserto é feito no seu lar, já que não há tanto espaço na loja. O segundo turno começa logo depois que larga do trabalho oficial. “Eu não me canso não, vou dormir pensando em relógio e acordo pensando no relógio”, brinca.

 

O trabalho é tão prazeroso para o relojoeiro que quando pega algum pedido, toda dedicação se transforma em qualidade. “Aqui eu deixo como se tivesse saído da fábrica. Dou polimento, troco vidro, lubrifico as engrenagens, deixo perfeito”.

 

Para ele, o mais importante de tudo é saber que:

Hoje, as badaladas dos relógios, o som dos ponteiros e a presença do tempo na rotina já se tornaram algo essencial na vida de quem construiu tudo que tem através do conserto de medidores. Sua clientela é o que ele chama de "pessoal mais antigo", que faz questão de usar relógios de muitos anos.

 

Independentemente dos serviços mais tradicionais, Alcides aceita qualquer conserto e assume todos os dias quando se acorda o desafio de manter vida uma tradição que mudou a sua história e serviu de orquestra durante esses 40 anos na profissão.

 

O atendimento na loja funciona das 8h da manhã às 17h30. Apenas no sábado, o horário termina mais cedo, às 16h. O preço do serviço varia entre R$ 5 e acima dos R$ 250, dependendo do conserto. Para entrar em contato com a Relojoaria de seu Alcides é preciso ligar ou ir diretamente na loja.

Pegando um dos instrumentos mais antigos deixado para conserto, ele coloca no rosto uma lupa de olho, que aproxima o campo de visão. Acostumado com a delicadeza das peças, a mão já nem treme mais. Com uma pinça e uma chave de fenda pequena, específica para relógios, começa a mostrar os mistérios por trás dos ponteiros. Independente do uso da lupa e dos 64 anos de idade, o especialista consegue enxergar precisamente cada canto do medidor. O modelo que está em suas mãos é dos anos 50, da marca Lanco, que funciona ainda a corda.

 

Segundo o relojoeiro, o tempo de vida dos relógios depende muito do cuidado e varia também do tipo do objeto. O modelo dos anos 50, por exemplo, pode funcionar até ter peças no mercado para troca em caso de ajustes. O que, a cada dia, tem se tornado mais difícil. Muitas vezes, ele precisa da ajuda dos filhos para procurar as peças na internet e conseguir consertar a relíquia.

– As coisas vai passando, o tempo vai passando e... vai se atualizando. As peças, os materiais, isso é em todo campo, vai saindo de linha. Eles vão deixando de fabricar os materiais. Pra a gente conseguir dá trabalho, né. E outra coisa também, realmente não é fácil. Eu to com uma média de 40 anos na profissão e ainda hoje tô aprendendo. Ainda aparece novidade.

Graças ao ofício, conseguiu criar os três filhos, porém, apenas um seguiu os caminhos do pai. Hoje, o herdeiro tem uma loja no mesmo local onde seu Alcides trabalha, no entanto, no outro corredor do Mercado de Casa Amarela. Para ele, é um orgulho saber que a tradição foi passada. Já os outros dois sabem consertar, mas só o ajudam nas horas vagas, pois trabalham em outras áreas.

– A vida não é só rosas, tem espinhos. E a responsabilidade de qualquer profissão que você adquirir tem que ser com responsabilidade e dignidade, pra poder ganhar a confiança do público.