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Reportagem 1

Infância castigada, direitos negados

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Desigualdade social tem dura ligação com as causas do trabalho infantil no Brasil. Claro aos olhos dos brasileiros, o problema persiste, faz vítimas e ofusca sonhos

De frente ao mar, lazer e trabalho infantil

O calendário marca um domingo. Dia de descanso para muitos recifenses que enxergam no céu ensolarado uma boa oportunidade de lazer. É a combinação perfeita para um leve e descontraído passeio, seja na praia, parque, shopping ou qualquer outra opção. Mas num entendimento oposto ao momento indicado para uma boa folga, um garoto de apenas 12 anos vê esse mesmo dia de domingo como sua grande chance de juntar uns trocados. Dinheiro suado, difícil pela concorrência comercial, longe de ser uma fortuna. Quantia guardada cuidadosamente pelo franzino Pedro em uma surrada bolsa amarrada à cintura, para evitar que os valores arrecadados virem alvo de assalto, pois o pequeno, apesar da pouca idade, já conhece as malícias dos adultos que se aproveitam para roubar o alheio.

Em um bairro periférico da Zona Sul da capital pernambucana, o garoto deixa a comunidade onde reside em direção à casa de um colega. Sem perder o pique, sustenta nos ombros um pedaço de madeira com menos de dois metros de comprimento, composto por pequenos pregos que servem para segurar saquinhos cheios de amendoins. O produto é vendido por Pedro desde que ele tinha apenas seis anos de idade. Um é R$ 2, três custam R$ 5. Valores que, ao final de um dia inteiro de trabalho, servirão para o pequeno ajudar nos custos da família. Numa localidade humilde, mora junto com a mãe, uma dona de casa, e o pai, que vive em busca de pequenos serviços gerais. De acordo com o garoto, suas vendas de amendoins servem para diminuir a falta de renda que há tempo perturba seu lar. Em mais de oito horas de jornada, o apurado não passa de R$ 50.

Nathan Santos/LeiaJáImagens

Ao encontrar o amigo, Pedro trata de conferir se ele já está pronto, pois não quer perder tempo, já que o domingo ensolarado atrairá centenas de banhistas para a Praia de Boa Viagem, situada na área nobre da Zona Sul do Recife. É para lá que ele e o companheiro seguirão na tentativa de vender os amendoins. Atraído por Pedro, o jovem Paulo, 14 anos, resolveu se arriscar na venda do produto, por viver uma realidade econômica bastante semelhante à situação do amigo. Juntos, sobem em um ônibus e começam o trajeto sem a companhia de qualquer responsável legal que pudesse garantir o mínimo de segurança para as duas crianças. Não há mordomia para os garotos e nem muito menos lazer em pleno domingo ensolarado. O lazer é para os clientes, enquanto que debaixo de uma temperatura quente, eles se arriscam entre desconhecidos oferecendo os sacos de amendoins.

De frente para os prédios que assistem o grande mar de Boa Viagem, centenas de banhistas aproveitam a praia com amigos e familiares. Na areia fina, crianças curtem piscinas improvisadas ou promovem brincadeiras com os pais. Os coloridos picolés refrescam os banhistas expostos à alta temperatura, assim como a cerveja gelada apreciada pelos adultos. Mas no mesmo local onde os pequenos se divertem ao lado das suas famílias, os garotos vendedores de amendoins circulam descalços, com a sola do pé se arrastando na areia quente, oferecendo seus produtos a fim de garantir os trocados. Por trás de todo esse esforço, está um sério panorama de trabalho infantil, que apesar de ser visto por Pedro como algo positivo, é de fato uma mazela que prende as crianças em atividades prejudiciais ao desenvolvimento escolar e social. "A gente tem que lutar para vender! É assim mesmo. Gosto de trabalhar, porque posso comprar minhas coisas e para a minha família", diz Pedro, num misto de misto de otimismo e inocência por desconhecer os efeitos do trabalho infantil. Ambos afirmam que trabalham, mas não deixam a escola de lado. Confira mais relatos no vídeo a seguir:

Resquícios de mazelas históricas

Preso no passado histórico brasileiro, o trabalho infantil tem sua origem ainda no período colonial. Assim como na linha de desigualdade social tão latente na sociedade contemporânea, as crianças pobres eram as vítimas dos serviços exploratórios, enquanto que os filhos das famílias de melhor poder aquisitivo se dedicavam aos livros. Criou-se, então, a partir de diversos fatores, a ideia de que a cria do rico teria que estudar, enquanto que o filho do pobre deveria trabalhar para garantir sua sobrevivência. Esses e outros resquícios históricos expressam um panorama de entendimento sobre as causas do trabalho infantil, inclusive traduzidos no contexto que encontramos hoje em tantas cidades do País.

Estudiosos da área social entendem que, pelos acontecimentos históricos do Brasil, não existe apenas uma linhagem que possa explicar a origem do trabalho infantil. Portanto, seriam várias histórias, em diferentes momentos da memória brasileira, que desencadearam fatos que comprovam a participação de crianças em diversos tipos de serviços. Mas o que há em comum é o fato dessa exploração atingir apenas os pequenos das camadas pobres. Dessa forma, em diferentes regiões brasileiras, podemos encontrar indícios de menores sendo submetidos a atividades que, pela lógica, não deveriam ser realizadas por crianças.

De acordo com a doutora em serviço social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e gestora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Política da Criança e do Adolescente (Gecria), Valéria Nepomoceno, essas histórias que originam a exploração do trabalho sempre desrespeitaram direitos e necessidades básicas das crianças. Para a doutora, é impossível abordar o trabalho infantil sem fazer conexões com as classes sociais das vítimas, seja em épocas passadas ou em flagrantes tão comuns a nós brasileiros, que presenciamos no dia a dia inúmeros casos de crianças trabalhando nas ruas e espaços públicos.

Brenda Alcântara/LeiaJáImagens

"Não existe uma história específica da exploração do trabalho infantil no Brasil. O que a gente tem são várias histórias sociais da infância pobre e essas histórias são marcadas por desrespeitos às necessidades mais elementares de crianças e adolescentes. Esse desrespeito leva crianças e suas famílias ao envolvimento com o trabalho. Imaginando a história depois do descobrimento do Brasil, identificamos que as crianças escravas e filhos de escravos já trabalhavam, e quando chegavam aos seis, sete anos, estavam envolvidas diretamente nas atividades, seja na lavoura, engenhos, casa grande. As crianças pobres, negras e escravas já trabalhavam! Não podemos discutir tudo isso sem pensar na classe social desses pequenos e suas famílias. O trabalho infantil, sem dúvidas, está ligado diretamente à situação de pobreza. Os meninos e meninas pobres trabalhavam, enquanto que os ricos estudavam", explica Valéria Nepomoceno.

A doutora em serviço social destaca também que, após o fim da escravidão no Brasil, as crianças de origem humilde passaram a viver perambulando pelas ruas. Sem apoio econômico e pela ausência de políticas públicas, aumentaram registros de pequenos delitos, além dos casos de exploração do trabalho infantil. "Os negros libertos não receberam nenhum tipo de apoio de políticas públicas para essa nova fase da vida. Então aumentou a pobreza e a gente passou a encontrar mais crianças pelas ruas. No início do Século 20, encontramos principalmente meninos se envolvendo em pequenos delitos e nesse período já não vemos resposta do estado, não havia políticas para menores nessa condição social de pobreza. Isso aconteceu em todo o Brasil. A primeira resposta do estado brasileiro só veio com a polícia, quando a gente passou a ver as crianças sendo presas. Foram criadas instituições de internamento, com a perspectiva coercitiva e não de proteção. Essas instituições, em sua maioria, tinham uma proposta educacional do ensino regular, mas junto, existia uma disciplina muito forte do trabalho. Elas trabalhavam e se envolviam em alguma formação profissional para atender às necessidades do mercado em idades que não correspondem a um trabalho adulto. Crianças de 9, dez anos de idade, já eram preparadas para trabalhar", relembra a professora. "O trabalho sempre esteve presente na vida da criança pobre brasileira", complementa a docente.

Reforçando o fato de que o trabalho da criança tem forte elo com a condição de pobreza gerada pelas desigualdades sociais, a professora Valéria opina que nem sempre os pequenos eram obrigados a trabalhar pelas suas famílias, assim como nos dias de hoje. Pela crua realidade de disparato econômico, em um contexto que se vê claramente a divisão entre os grupos pobres e os saudáveis economicamente, era natural que os filhos, ao se depararem com a condição de pobreza dos pais, se colocassem à disposição para ir às ruas em busca de dinheiro. "Para a sociedade pobre é natural a criança trabalhar, mas algumas crianças são obrigadas – pela necessidade ou em casos que adultos são responsáveis pela exploração -, porque nenhuma gosta de trabalhar", frisa. Segundo a doutora, só em 1927 foi criada uma norma federal que atentou para o combate da negação dos direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

"A primeira legislação brasileira a considerar as questões, em termos federais, das crianças e adolescentes, é o Código de Menores de 1927. Naquela época não era infância e adolescência, as crianças pobres eram tratadas como menores. Até hoje, o menor é aquele adolescente pobre, excluído. A polícia identificava nas ruas crianças que não iam para a escola, envolvidas em pequenos delitos ou qualquer outra situação entendida como irregular. Era uma lei voltada só para a criança pobre, numa visão coercitiva, com o objetivo de punir. A punição era o internamento", explana Valéria.

Outro marco histórico, segundo a professora, foi a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), só em 1990. Seu grande objetivo é preservar os direitos dos pequenos e dos jovens, por meio de políticas assistenciais, medidas de proteção e atividades socioeducativas, além das ações de combate ao trabalho infantil. No contexto do ECA, pessoas com até 12 anos de idade são consideradas crianças, enquanto que quem tem de 12 a 18 anos é considerado adolescente. "Dez anos depois da criação do Estatuto, o Brasil passou a receber pressões internacionais, principalmente da Organização Internacional do Trabalho (OIT), para reduzir os números do trabalho entre crianças. Para a imagem do País, esses casos são muito ruins. Assim, começam a existir ações e o Brasil passa a pensar como responder à questão da exploração infantil. Se criou o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) com eixos e objetivos centrais para acabar com o trabalho. Esse plano contou com o apoio do Ministério do Trabalho, organizações governamentais, entre outros grupos. O PETI estimula que os estados e municípios elaborem seus próprios planos, para que o poder público possa colocar em prática ações para prevenir e combater o trabalho entre as crianças", comenta a docente. Acessos à educação, lazer e saúde são alguns exemplos de direitos do público infantil.

A professora Valéria Nepomoceno entende que, pelo atual panorama social e econômico do Brasil, é muito difícil erradicar os casos de trabalho infantil. Segundo a doutora em serviço social, enquanto existirem desigualdade e a necessidade das famílias pobres brasileiras de lutar pela sobrevivência, haverá o ingresso de crianças e jovens em serviços que ferem direitos, como o acesso à educação. No vídeo a seguir, Valéria traça um panorama histórico e social do problema no País:

Combate, um dever de todos

Apesar de o Brasil apresentar reduções nos índices de crianças e adolescentes inseridas em atividades trabalhistas, os números oficiais ainda são expressivos e comprovam a persistência e seriedade do problema, que literalmente deve ser combatido pelos setores da sociedade. O mais recente levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado por meio da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) com dados de 2015, mostra que 2,7 milhões de pessoas entre 5 e 17 anos foram submetidas a atividades de trabalho, e desse número, quase 16% eram de crianças entre 5 e 13 anos de idade. O Norte e Nordeste são as regiões que apresentaram os piores percentuais, pois essa proporção subia para 27,5% e 22,4%, respectivamente.

De acordo com dados divulgados pelo governo federal, atualmente, 80% do trabalho infantil no Brasil está concentrado no grupo com idade de 14 a 17 anos. A maioria das vítimas é do sexo masculino (65,5%), vive em áreas urbanas (69%), recebe remuneração (74,9%), trabalha mais de 20 horas por semana, mas frequenta a escola. Além disso, segundo o Sistema Nacional de Indicadores em Direitos Humanos, meninos negros são as principais vítimas. Levando em consideração o cenário pernambucano, análise do Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil em Pernambuco (Fepetipe), com base na PNAD 2013, aponta que mais de 140 mil crianças foram identificadas em situação de trabalho infantil no Estado.

Diante de tantos números, ações e campanhas brasileiras contra o trabalho infantil, pode surgir o entendimento de que quem explora esse tipo de atividade está cometendo um crime. Porém, a exploração em si ainda não é criminalizada no Brasil, mas se caracteriza como um procedimento ilegal e que fere o direito do próximo. Segundo a procuradora do Trabalho e coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Trabalho (MPT), Valesca de Morais do Monte, apesar de não configurar crime, a exploração deve ser combatida.

"O trabalho infantil é uma atividade econômica ou de sobrevivência que pode ter ou não finalidade de lucro, feita por crianças ou adolescentes com idade inferior a 16 anos. Não é considerado crime porque não existe um tipo legal específico no código penal brasileiro. Portanto, é uma violação direta e frontal a um direito fundamental, constitucional, ao não trabalho antes dos 16 anos. O trabalho infantil pode operar na área urbana ou rural, em ambientes ilícitos. Ele tem lastro na miséria e é potencializado por conta das desigualdades sociais, perpetuando a pobreza. É um cenário desolador na medida em que retira direitos dessas crianças e adolescentes, que são diretamente previstos na constituição federal", explica a procuradora do Trabalho.

Brenda Alcântara/LeiaJáImagens

De acordo com a procuradora, o combate ao trabalho infantil requer ação em conjunto entre a sociedade civil, organizações não governamentais e pode público. Na prática, assim como os governos municipais, estaduais e federal precisam trabalhar para coibir a exploração, os populares também devem agir, por meio de denúncias, para ajudar no processo de erradicação do trabalho entre crianças. "Nós estamos diante de um problema que envolve toda uma rede de proteção. Quando a constituição fala que família, sociedade e estado têm que priorizar a proteção integral, todos nós temos o dever de conferir para essa criança essa proteção. Quando a sociedade identifica algum caso de violação dos direitos humanos, ela tem, por dever, que fazer os devidos encaminhamentos, como contatos com o conselho tutelar, MPT, Ministério do Trabalho...", orienta Valesca de Morais.

Pela experiência adquirida durante as atividades de combate ao trabalho infantil em todo o País, a procuradora do MPT compactua da ideia de que punir as famílias das crianças exploradas não é o mais indicado. Valesca de Morais reforça que o trabalho entre menores tem ligação direta com a condição de pobreza de muitos brasileiros e, nesse contexto, até mesmo as famílias se tornam vítimas da desigualdade social. Ouça a explicação da procuradora no áudio a seguir:

Questionada por que o Brasil ainda não erradicou o trabalho infantil, a procuradora acredita que a desigualdade social que insiste em castigar o País é responsável pela persistência do problema. Sobretudo, Valesca de Morais não deixa de reforçar a importância da atuação do poder público e da sociedade civil, para que ambos não fechem os olhos diante deste sério cenário em que crianças trocam brinquedos por afazeres serviçais. "Quanto mais nós temos desigualdade social, o trabalho infantil se torna uma emergência. É uma violação de direito humano, porta de entrada para muitas violações. Nós entendemos que o grande desafio é cada vez mais conscientizar a sociedade contra a existência de alguns mitos, como por exemplo 'é melhor a criança estar trabalhando do que usando drogas', colocando a exploração como um mal menor. Somos uma sociedade que valoriza muito o trabalho, como algo que dignifica. Mas esse trabalho só tem característica positiva quando ele é realizado a partir da idade mínima, que a nossa constituição define 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Precisamos contar com a família e com o estado pela proteção integral da criança e do adolescente", finaliza a procuradora do MPT.

*Nomes utilizados para as crianças são fictícios, para não identificar os personagens.

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