A morte sussurra no ouvido do vaqueiro

Acidentes na espinhosa, rústica, seca e perigosa caatinga são comuns, muitas vezes deixando sequelas como um olho cego ou um osso quebrado. Até a produção do couro se dá de forma insalubre

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A bravura dos vaqueiros é de impressionar. Ser corajoso é uma característica essencial para quem tem no sangue a missão de aboiar o gado. A espinhosa, rústica, seca e perigosa caatinga abriga riscos que podem tirar a vida do homem que, montado em seu cavalo, corre desgarrado para não deixar o boi escapar. Nem mesmo as vestimentas de couro, consideradas ferramentas essenciais para a luta no catingal, são capazes de evitar acidentes. O trabalhador, sob a fé religiosa que move o povo do Sertão, parece que não enxerga as inúmeras possibilidades de acidentes e se arriscam, em meio à vegetação desidratada, com o objetivo de recuperar o animal perdido do patrão. E não importam os ferimentos, quedas ou fraturas. A coragem dos encourados se sobrepõe até à fraude trabalhista do criador, pois o vaqueiro mantém sua palavra em nome do compromisso de cumprir, a qualquer custo, o mandado.

Vegetação fechada, galhos secos e espinhos são perigos constantes para o vaqueiro e seu animal na caatinga

Incontáveis e imprevistos são os dias que um vaqueiro pode passar na caatinga. Ele tem hora para partir, conduzindo as boiadas do patrão – mesmo com a diminuição dos rebanhos por causa da seca -, mas não sabe quando e como vai voltar para casa. Quinze, vinte, trinta dias... Não há limite de carga horária no processo de condução do gado, feita por cavalgada, que acontece quando rebanhos são levados de uma cidade para outra, ou de um estado para outro, principalmente quando existe a necessidade de se encontrar pasto para os animais. O trabalho começa na fazenda ou no sítio, ainda de madrugada, devendo o trabalhador ordenhar a vaca para garantir o leite fresco do dono da terra. Em seguida, ele alimenta os animais, limpa o ambiente – muitas vezes sem nenhum equipamento de segurança – e ainda pode ser obrigado a desempenhar trabalhos braçais, como montagem de cercado de madeira. Sem contar as vezes que ele, sem nenhuma formação, trata os animais, como se fosse veterinário. É o conhecimento adquirido na ‘faculdade do catingal’, em que se constrói um vínculo de confiança e respeito entre o vaqueiro e o animal.

Mas a ordenha, o tratamento do animal doente e a montagem de cerca não se comparam, nem de perto, aos riscos da pega do boi. É dentro da caatinga que a morte sussurra, a todo instante, no ouvido do vaqueiro. Em cima do cavalo ele corre, desgarrado, sem medo e encourado. Termina cortado, cansado, arranhado e até com um osso quebrado, sem o socorro necessário ou remédio para tomar. O animal também sofre, mas acompanha o ritmo intenso e bravo do trabalhador. O cavalo tem que ser tão corajoso quanto seu dono. Porém, a coragem, somada ao mandado exploratório do patrão, encobre os riscos. Vaqueiro acidentado, doente ou inválido não falta no Sertão, sem benefício ou auxílio, desprezado pelo patrão, que por causa da invalidez do antigo trabalhador deu vez ao vaqueiro mais novo – mais nova vítima da exploração.

É preciso ter muita coragem para se jogar em cima do boi em velocidade

Pedro Artur de Lavor, 58 anos de idade, nasceu em Serrita, capital do vaqueiro. Os perigos da caatinga foram conhecidos por ele ainda na infância. Cresceu ao lado do pai, seu Artur Nunes, já falecido, mas vivo na memória de quem vive a luta do gado. Tanto é que, a pedido do próprio pai, Pedro o sepultou no quintal do sítio da família. Também por causa de outro pedido de Artur quando vivo, o caixão foi coberto por esterco de boi, como forma de representar a importância e o amor sentido pela lida com o gado. Pai e filho foram vítimas de acidentes. Porém, mesmo sequelado, Pedro Artur, mais um trabalhador explorado por patrões que não cumprem as normas trabalhistas, insiste em manter viva sua bravura em meio à caatinga perigosa, mas cobra das autoridades mais atenção aos vaqueiros.

Vista curta

Os espinhos da caatinga estão entre os principais perigos da lida com o gado. O vaqueiro que entra no mato, corre atrás do boi e não volta cortado não é vaqueiro de verdade. Mas nem sempre a vegetação cortante atinge a pele do trabalhador. Ela também bate no olho, acaba com a visão, transmite dor e desespero, faz o mundo virar escuridão. Não existe estimativa oficial, mas o número de vaqueiros cegos é grande. Em Serrita encontramos vários. Todos contam a mesma história: estavam correndo para pegar o boi solto no mato. A própria caatinga não dispõe de áreas abertas, o que dificulta a visualização do terreno. O resultado disso tudo são trabalhadores acidentados, inválidos, desamparados, sem benefício e sem saber a quem recorrer.

Mesmo conhecedor dos perigos da caatinga, Assis Domingos, na época com 38 anos, invadiu o mato à noite para achar a novilha do patrão. Tinha que pegar o bicho a qualquer custo, pois queria garantir a comida de sua família, a ser paga pelo dono do animal. Em um catingal da zona rural de Serrita, o bravo vaqueiro subiu no seu cavalo, se vestiu de couro e entrou de mata adentro. A própria escuridão da noite deixou o trabalho ainda mais difícil, mas os riscos não inibiram a coragem de Assis. “Quando a vaca está no mato eu só fico sossegado quando pego. Comigo é assim. Sei dos riscos e do perigo de sofrer acidente, mas isso nunca me fez medo. Vaqueiro tem que ter coragem”, relata o trabalhador.

Ao ouvir o chocalho balançado no pescoço do animal, Assis imaginou que o bicho estava por perto, após horas e horas de procura intensa. Mesmo diante da escuridão, o vaqueiro conseguiu visualizar a novilha e sem rodeio disparou com o cavalo para capturar o animal. O vaqueiro – hoje com 66 anos de idade - correu de um lado para outro, desgarrado em cima do cavalo, e quando estava bem próximo da vaca, sentiu a ponta de um espinho entrar no seu olho direito. “Foi dor! E ainda eu estava no meio do nada, sem nenhum companheiro de trabalho do meu lado. Acabei foi ganhando um olho cego”, relata o vaqueiro.

No vídeo a seguir, Assis detalha o acidente e denuncia que não recebeu auxílio após o acontecido:

Com menos idade que seu Assis, mas acidentado no olho também por causa da luta com o gado, Sergio Alexandre Lavor, 35, também perdeu a visão. Assim como seu Assis, não conseguiu se aposentar por invalidez e continua sem nenhum auxílio médico. Em 2014, enquanto trabalhava em um curral, foi tentar amarrar uma vaca arisca. O bicho meteu a pata no olho direito do vaqueiro, que nada pôde fazer. “Fiquei com a vista curta. Cego desse jeito, fica muito difícil para trabalhar. Por isso não faço nada para patrão. Apenas tomo conta de uns animais que tenho aqui no meu sítio em Serrita e vou vivendo conforme Deus quer”, conta o trabalhador.

Segundo Sérgio, é impossível trabalhar como vaqueiro sendo cego de um olho

A falta de auxílio para acidentes de trabalho está presente na própria lei de regulamentação da profissão de vaqueiro. Segundo a norma, os contratos não precisam ter seguro de vida ou acidente em favor do trabalhador, sob a justificativa que isso ajuda os patrões a economizarem dinheiro e, consequentemente, auxilia a manter os empregos dos trabalhadores. Muitos vaqueiros discordaram desta parte da lei, porém, os encourados devem entender que o trabalhador rural empregado tem direito à aposentadoria por invalidez, estando ou não em gozo de auxílio doença, caso seja considerado incapaz e insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta subsistência.

Segundo o analista do Seguro Social do INSS, Felipe Ribeiro Costa, para ter esse direito, é necessária carência de 12 contribuições, “salvo se decorrer de acidente de trabalho ou de doença ou afecções de que trata o inciso III do Art. 30 do Decreto 3048/1999”. O agendamento da perícia médica deve ser feito pela central através do número 135 ou pelo site do MTPS e agências da Previdência Social.

O couro também faz suas vítimas

Há quem diga que o vaqueiro, sem as devidas indumentárias, é um homem tímido, vergonhoso, calado. Ao vestir-se com as roupas de couro, geralmente oriundas do bode e do boi, elas se transformam em uma verdadeira armadura que desperta coragem e heroísmo no trabalhador. É como se fosse uma proteção espiritual, que dá força ao homem do Sertão por se tratar de um vestuário que, além de caracterizar a lida com o gado, o protege das artimanhas da caatinga. O animal, companheiro de luta do vaqueiro, também recebe uma armadura especial. Homem e cavalo lembram, como nas histórias da mitologia grega, o personagem centauro, pela bravura em meio à rústica vegetação.

Vestes do vaqueiro correspondem a uma verdadeira armadura de trabalho

Mas, se por um lado é importante como proteção dada aos vaqueiros, por outro o couro apresenta insalubridade no processo de produção. Antes de chegar ao artesão, o couro passa por um processo sem condições mínimas de higiene, mas que representa “o ganha-pão” de alguns trabalhadores. O perigo começa no abate do animal que dá a pele, uma vez que as matanças geralmente ocorrem sem a utilização de equipamentos de segurança ou técnicas de higiene.

Desde 1994, Antônio Francisco dos Santos, de 38 anos, mata bodes para a produção de couro. A carne do animal também é comercializada em Serrita como fonte de alimentação. A técnica utilizada para sacrificar o animal foi ensinada pelo seu pai e o próprio trabalhador reconhece que existem procedimentos que não garantem higiene para ele próprio. “Vendemos o bode nas feiras. Mas o principal para a confecção das peças do vaqueiro é o couro. Vendemos a peça toda para o curtidor, que fica responsável pelo acabamento da pele. Geralmente, a preferência é pelo couro do bode porque ele é bem mais resistente. O material sai, geralmente, por R$ 6”, conta o trabalhador.

No fundo de sua residência, localizada na zona rural de Serrita, Antônio cria vários animais. Em quase todos os dias da semana, ele sacrifica os bichos para produzir o couro. O sangue do animal é despejado em um pequeno balde e o trabalhador utiliza uma faca para retirar o couro e órgãos do bode. Não há luvas ou qualquer outro tipo de equipamento de proteção. Tudo é feito de forma rústica, mas com uma habilidade que só o homem do Sertão domina.

Após a retirada da pele do animal, o couro é enviado para outro trabalhador. É neste momento que ocorre a parte mais difícil e imunda do processo de produção. No curtimento do couro, a pele recebe os últimos cuidados antes de ser colocada à venda, sem os devidos procedimentos higiênicos para a manutenção do ambiente de trabalho do curtidor. Na cidade de Salgueiro, também no Sertão de Pernambuco, Francisco José da Silva, de 52 anos, mantém viva a atividade de curtidor. No quintal de sua casa, ele ainda trabalha, de forma rústica, limpando o couro, também sem nenhum cuidado com sua saúde e higiene.

Em um tanque de cerca de dois metros, com uma água barrenta e cheia de sujeira, ele fica com as pernas submersas e molhando a pele do bode, ao mesmo tempo em que passa uma faca para retirar os pelos. Ao lado do tanque, uma verdadeira montanha de pedaços de pele dá uma noção da quantidade de bodes que foram mortos para a produção de couro. O cheiro é insuportável e o ambiente não proporciona qualquer condição de bem-estar ao trabalhador.

“O curtimento do couro deixa a pele do bode pronta para o trabalho do artesão. Eu tiro o pelo com cal e uso uma casca de uma árvore para dar cor ao couro. Aprendi esse trabalho com meu pai e acredito que eu sou um dos últimos que faz essa atividade aqui no Sertão de Pernambuco. Até porque a geração de hoje não quer mais trabalhar com isso, porque os jovens têm nojo. É uma tarefa difícil e que rende pouco dinheiro: ganho uns 30 contos por semana, quando faço mais ou menos uns dez couros”, descreve Francisco. No vídeo a seguir, assista ao insalubre trabalho de produção do couro: