No Sertão, vaqueiro não tem vez, nem mesmo depois da lei
Donos de gado ainda exploram sem piedade os trabalhadores que, mesmo desrespeitados, honram suas missões nos territórios sertanejos
De Brasília, um convite foi destinado ao Sertão pernambucano. O papel, timbrado e de letras com formas muito bem desenhadas, era o primeiro sinal de esperança para milhares de vaqueiros espalhados pelo Nordeste brasileiro. Uma mensagem escrita pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, convocou os homens encourados para acompanharem a votação que apoiava o projeto de lei que regulamentou a profissão de vaqueiro. Era só o começo de um cerimonial muito bem articulado, mas que não passou de um evento político marcado por esperanças que findaram diante da atual realidade do homem sertanejo.
Júlio Correia Saraiva, na época com 67 anos de idade, ficou muito lisonjeado em receber um convite tão importante, descrito por ele como “um chamado dos homens importantes da capital do Brasil”. Morador da zona rural de Serrita, a capital do vaqueiro, localizada no Sertão de Pernambuco, seu Júlio, junto com o convite, recebeu a missão de reunir dezenas de vaqueiros que, pela primeira vez, sairiam do Estado, acomodados em um ônibus. Em setembro de 2013, os homens de pouco ou nenhum estudo, mas de muita experiência com a caatinga, viajaram para o Distrito Federal, certos de que, a partir da possibilidade da sanção do projeto de lei, teriam direitos trabalhistas que sanariam todo um passado cheio de exploração e irregularidades.
Foto em frente ao Planalto é uma das boas lembranças da viagem para Brasília, segundo seu Júlio
Na mala, seu Júlio levou as tradicionais peças que compõem a vestimenta do vaqueiro: gibão, chapéu, perneira, luvas e guarda peito. Mas também carregou consigo muita esperança em poder ver, após anos de luta, seu trabalho devidamente regulamentado. “Fiquei muito orgulhoso. A felicidade era muito grande em saber que iria para a capital do Brasil. Pensava, às vezes, em visitar o Recife, a capital do meu Pernambuco, coisa que nunca fiz. Mas chegar a Brasília nunca passou pela minha mente. E ainda mais para ver a regulamentação da minha profissão”, relata o vaqueiro.
A lida com o gado entrou na vida de seu Julio quase que pelo DNA. É o tipo de trabalho que o homem não escolhe fazer, mas simplesmente nasce com o dom, ao mesmo tempo em que se submete à luta pela necessidade de sobreviver. Desde criança atuando como vaqueiro, seu Júlio, hoje com 70 anos, continua firme e forte tangendo os animais de um lado para o outro, mas não pretende servir a nenhum patrão. “Cansei de trabalhar para patrão. Nunca ganhei o que um vaqueiro merece. Juntei o trocadinho que pude e comecei a criar meus próprios animais”, conta. Hoje, da viagem feita para Brasília restaram apenas as boas lembranças do Senado Federal e da boa receptividade dos organizadores da votação do projeto de lei. Porém, o mais importante, o cumprimento dos direitos trabalhistas do vaqueiro, ficou apenas nas promessas dos senadores. Tudo permanece do mesmo jeito. Nada mudou.
Cansado de trabalhar para patrões, seu Júlio resolveu ter suas próprias criações
O que não mudam são a luta e a dedicação de seu Júlio e dos demais vaqueiros do Sertão pernambucano que, antes de o sol brilhar, já estão de pé para cuidar do gado e das terras do patrão. Cansado de tantas promessas e principalmente do descumprimento dos direitos trabalhistas – previstos na Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) -, seu Júlio, em parceria com a Fundação Padre João Câncio – instituição que luta pela sobrevivência da profissão de vaqueiro em Serrita -, criou a Associação dos Vaqueiros de Serrita (APEGA), que atualmente conta com 73 associados. A principal reivindicação da categoria é o cumprimento dos direitos trabalhistas. Mas até agora tudo não passou de esperança.
De acordo com o texto do projeto sancionado pela presidente Dilma Rousseff em outubro de 2013, cabe ao administrador, proprietário ou não, do estabelecimento agropecuário de exploração de animais de grande e médio porte, de pecuária de leite, de corte e de criação, ficar com a responsabilidade de contratação dos serviços de vaqueiro. Conforme a proposta aprovada, esse tipo de trabalhador é classificado como o profissional apto a realizar práticas relacionadas ao trato, manejo e condução de espécies de animais do tipo bovino, bubalino, equino, muar, caprino e ovino. Entre as atividades do vaqueiro estão alimentar os animais, fazer a ordenha, treinar e preparar os bichos para eventos esportivos e culturais, desde que não sejam submetidos a maus tratos, contando sempre com a ajuda de veterinários.
O autor do projeto foi o ex-deputado Edigar Mão Branca (PV-BA). O relator da proposta, deputado Gonzaga Patriota (PSB-PE), exaltou o valor do profissional para a sociedade brasileira e classifica a regulamentação como um reconhecimento ao trabalhador. “O vaqueiro vive vestido de couro e se alimenta de farinha e rapadura. Bebe água onde bebem água os animais - água quente nas caatingas. Às vezes fica uma semana sem estar em casa. Então, a maior justiça que o Parlamento pode fazer a esse irmão brasileiro é o seu reconhecimento como trabalhador”, declarou Patriota, em entrevista à Agência Câmara de Notícias.
Mas apenas a aprovação não bastou. E nem muito menos a viagem dos trabalhadores nordestinos para Brasília. Serrita, a famosa capital do vaqueiro, onde é celebrada a missa mais importante para os homens do Sertão, reúne várias denúncias de fraudes trabalhistas, a maioria por falta de carteira assinada e pagamentos bem abaixo do salário mínimo. Mas nem todos os trabalhadores, mesmo cientes da injustiça praticada conta eles, têm coragem de expor a situação abertamente. O temor é pela perda do emprego, às vezes único meio de sobrevivência existente para os vaqueiros. Também há o medo por represálias, que podem atingir os trabalhadores e até seus familiares.
Em um dos sítios localizados na zona rural de Serrita, cujo nome não será revelado para manter a segurança do nosso entrevistado, um vaqueiro, apesar do medo, aceitou conversar com o LeiaJá. E mais uma denúncia se confirmou. O homem de poucas palavras, ainda que receoso em dialogar com a equipe de reportagem, contou claramente como é o descaso na região. Na grande maioria das fazendas, não existem trabalho com carteira assinada e nem pagamento de, pelo menos, um salário mínimo. Mas o próprio trabalhador reconhece que exigir o cumprimento da lei, sem o devido apoio dos órgãos fiscalizadores, pode comprometer sua única forma de ganhar dinheiro, ainda que tão pouco. Cobrar do patrão o respeito às causas trabalhistas pode representar demissão. Confira a denúncia no vídeo:
Descaso se repete em Cedro
No município de Cedro, vizinho a Serrita e já na divisa entre os Estados de Pernambuco e Ceará, as denúncias são feitas de forma mais aberta. A própria Associação dos Vaqueiros cobra dos governantes e do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS) ações mais corriqueiras para fiscalizar e punir os patrões que desrespeitam as leis trabalhistas. O vice-presidente da Associação, Antônio Romão Neto, denuncia que, dos cerca de 300 trabalhadores em atividade, 70% não têm carteira assinada e ainda recebem, por mês, um valor bem abaixo do salário mínimo. De acordo com Antônio, a quantia paga a um trabalhador, em média, é de apenas R$ 150 por semana, mesmo para jornadas de trabalho que chegam perto de 20 horas diárias, sem nenhum adicional noturno ou hora extra.
Em Cedro, 70% dos vaqueiros trabalham sem carteira assinada, segundo a Associação local.
Para o advogado especialista em direito trabalhista, Giovanne Alves, a lei que regulamenta a profissão de vaqueiro descreve a atividade, elenca suas atribuições, mas não abre qualquer exceção ou modifica as relações já previstas na CLT. Segundo Alves, a regulamentação é mais focada no reconhecimento cultural e político, e mesmo assim, os trabalhadores estão sendo explorados e ficam à margem dos benefícios trabalhistas. “Sobre a não assinatura da carteira de trabalho dos vaqueiros, isso é uma irregularidade que deveria ter sido sanada desde antes a entrada em vigor da lei regulamentada pela presidente Dilma. Os trabalhadores possuem este direito, como todos os direitos legais previstos na CLT e nas normas previdenciárias e assistenciais. O não registro é uma irregularidade administrativa que deve ser combatida pelo Ministério do Trabalho e Emprego e o não pagamento de direitos deve ser cobrado pelos vaqueiros na Justiça do Trabalho”, orienta o advogado.
Em outra situação que reitera descaso, a própria aposentadoria do vaqueiro também ficou apenas na promessa. Como grande parte dos trabalhadores não possui carteira assinada, a categoria não consegue contribuir, documentalmente, para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o que impossibilita a garantia do benefício. Segundo denúncia do secretário de Agricultura da cidade de Cedro, Cícero Barros, para conseguirem a aposentadoria, os vaqueiros acabam informando que são agricultores - uma vez que esses trabalhadores não necessitam de carteira assinada para se aposentar -, o que configura desvio de função. “Hoje o vaqueiro era para ganhar um bom dinheiro e ter o direito da aposentadoria. Mas a desvalorização é muito grande. Acredito também que faltam informações claras para conscientizar o vaqueiro, de uma vez por todas, que ele tem direitos e que esses direitos precisam ser cumpridos. O trabalhador sabe que a lei foi aprovada, mas não entende como funciona”, opina o secretário.
Aposentando há três anos, José Joaquim de Freitas, 72, conhecido como Zé Pilé, admite que só se aposentou por ter alegado ser agricultor rural. Também morador de Cedro, o vaqueiro reforça a denúncia da falta de carteira assinada e de como é difícil se aposentar como trabalhador que lida com o gado. “Me aposentei como agricultor rural porque é difícil se aposentar como vaqueiro. Ninguém consegue, sabe? Mas graças a Deus estou conseguindo viver. Não vivo mais na luta do gado porque fui demitido, por causa da idade que estou hoje, e também porque minha vista ficou ‘curta’. Se para quem tem a vista boa dentro da caatinga é perigoso, imagina para quem tem o olho ruim? E mesmo se eu fosse me aposentar como vaqueiro, o governo não aceitaria. Não tenho como comprovar que trabalhei com o gado, pois minha carteira nunca foi assinada e agora, depois de velho, é que não será mesmo”, conta o trabalhador.
Para garantir aposentadoria, Zé Pilé precisou alegar que era agricultor
De acordo com Josefa Betania dos Anjos, técnica do Seguro Social do INSS, quando não existe carteira assinada, o trabalhador, de fato, não consegue comprovar vínculo de trabalho com uma empresa ou patrão. “Na parte previdenciária, a carteira de trabalho é a prova de vínculo empregatício e do período que o trabalhador exerceu na categoria de seguro empregado. Quando um patrão não assina a carteira, perante a Previdência Social, pode haver o crime de sonegação de contribuição previdenciária, que ocorre quando não há recolhimento dessa contribuição pelo empregador, com pena de reclusão de 2 a 5 anos, além de multa. Também pode existir crime de apropriação indébita, que consiste no desconto da contribuição previdenciária do trabalhador, porém essa não é repassada à Previdência Social”, explica.
Sobre a aposentadoria de vaqueiros que alegam ser agricultores, Josefa confirma que existe o trabalhador rural na categoria de segurado especial, que atua em regime de economia familiar e contribui apenas se houver renda proveniente da venda de sua produção. “Não existindo essa renda, o agricultor precisa apenas comprovar o exercício da atividade rural durante o período igual à carência do benefício pleiteado. Já o trabalhador rural na categoria de empregado – como é o caso do vaqueiro – conta com os mesmos benefícios do empregado em atividade urbana e ainda pode se aposentar aos 60 se homem e 55 se for mulher”, completa a técnica do INSS. “O recolhimento da contribuição é de responsabilidade do empregador que, além de pagar sua parte, deve descontar a parcela do vaqueiro e repassá-la para a Previdência”, finaliza.