Nascidos vaqueiros
Nem mesmo as fraudes trabalhistas impedem que alguns jovens sigam o caminho dos pais, ajudando, com orgulho e heroísmo, a manter viva a tradição da pega do boi
“Ninguém se forma vaqueiro. O homem nasce vaqueiro”. Assim pensa Claudemir Miranda Saraiva, de 30 anos. Em suas veias corre o sangue de seu Júlio, entrevistado na reportagem “No Sertão, vaqueiro não tem vez, nem mesmo depois da lei”. E o “nascer vaqueiro” é uma realidade presente na vida dos sertanejos que lutam diariamente com o gado. Trata-se de um contexto que faz o pai transmitir para o filho todos os conhecimentos da pega de boi, que vão passando de geração em geração e criando novos e corajosos trabalhadores. Apesar das dificuldades da profissão, ainda existem jovens, mesmo em pequena quantidade, que seguem os caminhos dos pais encourados.
“Aprendi praticamente tudo da lida do boi com meu pai, seu Júlio. Ele pra mim é um herói. Sempre presenciei meu pai acordando cedo e trabalhando todos os dias de sua vida, faça chuva ou faça sol. Não é um trabalho fácil! Tem que ter coragem e disposição, afinal de contas é muito difícil enfrentar os perigos da caatinga e os problemas do Sertão. O que me deixa triste é que, apesar de ter me tornado vaqueiro, seguindo os passos do meu pai, nunca vi nossa profissão valorizada da maneira como deveria ser. A Lei do Vaqueiro não mudou nada por aqui, sem contar que nós somos lembrados apenas na época da Missa do Vaqueiro, porque depois que o evento religioso acaba, a gente fica esquecido aqui neste Sertão”, relata Claudemir, inspirado nas experiências vividas ao lado de seu pai.
Claudemir também reside na área rural de Serrita e possui algumas criações de gado e cavalos que garantem o sustento de sua família. Já não mora com seu Júlio, mas não deixa de visitar seu “velho vaqueiro”, descrito por ele como um homem corajoso e querido por todos. Assim como eles, existem vários outros exemplos de filhos que seguem os conhecimentos do pai, por amor e gosto pela profissão, ou, na maioria das vezes, pela necessidade de sobrevivência e escassez de trabalho em terras sertanejas. A própria seca, em vários momentos, dificulta o trabalho com a agricultura, se tornando mais um fator que leva os mais jovens a se tornarem vaqueiros.
Ainda criança, filho de vaqueiro passa a conhecer a realidade do pai que vive a luta com o gado
Ninguém melhor do que Maria Miranda Sousa Saraiva, 73, para descrever, com todos os detalhes, os cotidianos de pai e filho na luta do gado. Esposa de seu Júlio há 35 anos, a mãe de Claudemir viu seu bravo marido enfrentar o descaso profissional dos patrões e presenciou seu filho ingressar no mesmo trabalho que, ainda hoje, é alvo constante de fraudes trabalhistas. Mas nada disso tira o orgulho de dona Maria pelos dois homens da sua vida. “É uma vida dura, mas é a forma como sobrevivemos no Sertão. Desde o início do casamento, eu vi meu marido saindo sempre de madrugada para lutar com o gado. Tinha hora para começar, mas quando ia acabar ninguém sabia. Eu também precisava ajudar a criar nosso filho. Claudemir, depois que ficou ‘grandinho’, começou a ajudar o pai e foi entrando na vida de vaqueiro, o que é muito comum acontecer nas famílias lutadoras que nem a nossa”, relata dona Maria, que ainda ajuda nos serviços domésticos, apesar de adoecida. Ela também auxilia na produção de queijo caseiro.
“Faculdade de vaqueiro”
De corpo franzino, pouco falante, mas desenvolto em cima do cavalo, José Carlos da Silva de Sá, de 21 anos, é tido como um dos melhores vaqueiros entre os jovens de Serrita. Fama dada com toda razão. Seu pai e o avô também dedicaram suas vidas ao trabalho diário com o gado, muitas vezes sob as ordens dos patrões, que engordam a lista de fraudadores das regras trabalhistas, uma vez que os parentes de José Carlos também nunca tiveram carteira assinada ou qualquer outro direito previsto na CLT.
José Carlos não quer ser universitário. Seu sonho é trabalhar dignamente como vaqueiro em uma fazenda
Diferente de seu pai e do avô – esse último motivo de orgulho para José Carlos e sempre mencionado por ele com a voz embargada de emoção -, o jovem José teve a oportunidade de estudar. Graças à ajuda e incentivo de seu avô, conhecido como Zé de Pedro, o rapaz conciliou a vida de vaqueiro com os estudos e hoje está finalizando o terceiro ano do ensino médio. José Carlos, pelo fato de estar bem próximo de ingressar em uma faculdade, poderia se dedicar à preparação para os vestibulares, mas, indo de encontro ao sonho de chegar ao ensino superior, ele vislumbra um futuro que tem plena relação com toda a sua infância.
“Se existisse e eu pudesse, eu queria é fazer uma faculdade de vaqueiro. Amo a luta do gado, sempre recebi os conhecimentos do meu avô e é com isso que quero trabalhar para o resto da minha vida. Vou terminar os estudos e começar a procurar uma fazenda para trabalhar. Meu grande sonho é encontrar um bom patrão, assinar minha carteira de trabalho e viver o restante da minha vida sendo vaqueiro. Meu avô, antes de morrer, me mostrou como é a realidade do gado e isso me conquistou”, declara José Carlos, ainda tímido, porém emocionado, ao falar da profissão.