Luta pela cultura vaqueira

Responsável pela organização da famosa Missa do Vaqueiro, Fundação Padre João Câncio é uma das poucas instituições que batalha para manter a tradição e a cultura deste guerreiro do Sertão

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O mestre Gonzagão descrevia em suas canções a crua realidade do Sertão. Levou o Nordeste esquecido para o restante do Brasil e se tornou um dos maiores artistas da nação. Enalteceu a figura do vaqueiro, quando, com sua voz marcante, conduziu a canção “A morte do vaqueiro”, uma homenagem a seu primo, Raimundo Jacó. Natural de Serrita, Jacó – que segundo relatos foi assassinado por outro trabalhador – é considerado o maior vaqueiro da história, segundo depoimentos dos trabalhadores mais velhos. O Rei do Baião conheceu o padre João Câncio, que por muito tempo evangelizou os moradores de Serrita. Formava-se então uma amizade que lutou em prol da cultura vaqueira. Ouça a canção “A morte do vaqueiro” na voz de Luiz Gonzaga:

Padre João Câncio segura microfone para que o mestre Gonzagão entoasse sua voz para os trabalhadores durante a Missa do Vaqueiro

Justamente para homenagear a memória de Raimundo Jacó, Gonzagão e o Padre João Câncio idealizaram, há quase 46 anos, a Missa do Vaqueiro, considerada o maior evento cultural e religioso do Sertão nordestino. Com certeza, é o ato que mais expressa a figura do vaqueiro em paralelo com sua fé. Todos os anos, durante o mês de julho, milhares de trabalhadores de vários cantos do Nordeste vão para Serrita e lá celebram o evento religioso, bem como participam de pegas de boi, vaquejadas e apresentações culturais, dentre outras atividades. Hoje, a Missa é organizada pela Fundação Padre João Câncio, em parceria com a prefeitura municipal.

Presidente da Fundação, Helena Câncio – que foi esposa de João após ele deixar de lado a batina – luta também pelo resgate e manutenção da cultura sertaneja do vaqueiro. Ciente de que a regulamentação da profissão teve um cunho mais de respeito a tudo que o vaqueiro fez no Brasil, desde o período colonial, ela entende que, na prática, os direitos trabalhistas dos vaqueiros ainda continuam sem a devida consideração, até pelo fato da grande diminuição de criações de gado, o que levou a uma queda na quantidade de fazendeiros que necessitam dos homens que lidam com o boi. Helena também realiza diversas pesquisas com os vaqueiros de Serrita e instiga, a partir de atividades artesanais, a produção de peças de couro que são comercializadas em vários lugares do Brasil e do mundo. Tudo feito por moradores da região, que descobriram no artesanato uma forma que reavivar a cultura sertaneja e ganhar dinheiro.

Helena Câncio luta pela valorização da figura do vaqueiro nordestino

O vaqueiro é de fato o centro dos trabalhos da Fundação Padre João Câncio. O espaço reúne fotos antigas, peças de vestuário, arquivos das antigas edições da Missa e outros elementos que fazem do local um verdadeiro memorial do homem do Sertão. Para Helena Câncio, lutar pela manutenção da profissão do vaqueiro é guardar a figura do homem que desbravou a caatinga e foi reconhecido tardiamente. “A gente tem uma preocupação com tudo que diz respeito ao vaqueiro, trabalhando a valorização desse homem nas pegas de boi e na Missa, e também a questão do artesanato em couro, inspirado no terno do vaqueiro, e depois criamos produtos. Isso tudo está muito ligado ao vaqueiro”, complementa a presidente da Fundação.

A Fundação conta com cerca de 60 moradores capacitados, que produzem peças em couro e comercializam os objetos. De acordo com Helena, os artesãos recebem uma parcela da quantia arrecadada com a comercialização dos produtos, enquanto o restante do dinheiro ajuda na continuação dos cursos e contribui para a manutenção da Fundação, além de viagens dos artesãos para feiras culturais fora de Serrita. Os preços dos produtos variam de R$ 25 a R$ 3 mil.

Fundação Padre João Câncio oferece qualificação em artesanato para populares

Apesar do trabalho promovido, Helena reclama de falta de apoio governamental e cobra mais atenção para a cultura vaqueira presente no Sertão. “A gente sofre muito com a falta de apoio. Há quatros anos vínhamos recebendo incentivo do Funcultura para manter as oficinas e capacitações em atividade. Para nossa surpresa, no ano passado, a gente não conseguiu aprovar nenhum projeto, sem sabermos o motivo. Se a Missa do Vaqueiro não é importante para o Estado, se o artesanato, que divulga tanto a nossa região, não está sendo visto como uma atividade com importância… Enfim, a gente tem um prazer imenso em trabalhar esses valores, mas a gente se decepciona quando não recebemos apoio do Estado”, relata a presidente.

Morador de Serrita e um dos capacitados na Fundação, Felipe Lira, de 22 anos, virou um amante do artesanato por meio do trabalho realizado na instituição. Há cinco anos ele trabalha na produção de peças em couro e consegue aumentar sua renda graças à profissão. “Hoje a gente trabalha todas as peças, desde o gibão até telas, além de bolsas, sandálias, tapetes, luminárias… É uma variedade muito grande. Nosso trabalho é diferenciado, porque aqui resgatamos uma cultura. Trabalhamos nem tanto pela questão financeira, mas sim pela arte em si. É uma questão cultural que já vem de nossas famílias e nos faz querer continuar com tudo isso”, relata o artesão.

Filho de Helena e João Câncio, o secretário de Cultura de Serrita, Thiago Câncio, é outro defensor do trabalho e da cultura do vaqueiro. Conhecedor da realidade dos trabalhadores, o secretário também afirma que nem mesmo a regulamentação da profissão fez com que os direitos trabalhistas dos vaqueiros fossem valorizados e cumpridos. “Na prática, aconteceu apenas o reconhecimento formal. Mas em questão de benefícios, pelo menos no meu conhecimento, não teve nenhum. O vaqueiro ainda não entende muito bem como se deu esse reconhecimento e acredito que precisa existir fiscalização e a lei deve ser divulgada para o próprio trabalhador. O patrão precisa respeitar esse trabalhador. Meu sentimento com toda essa situação é de tristeza, porque a gente vê que não existe, na prática, a valorização da profissão”, acredita o secretário.