TRABALHADOR

Especial jornalístico mostra como a herança escravista e a pobreza influenciam as condições precárias de trabalhadores brasileiros. Eles são submetidos a atividades insalubres e que exigem extrema força corporal para sobreviver. As reportagens ainda descrevem as principais irregularidades trabalhistas registradas no Brasil.

O especial

 

Experiência sensitiva desagradável, estímulos intensos ou prejudiciais, ferimentos, agonia, sentimento angustiante. A dor pode ser descrita com inúmeras explicações e sinônimos na língua portuguesa. A forma como cada ser humano utiliza o termo para sintetizar uma situação ou um momento da vida remete às experiências individuais e coletivas em que esteve inserido. A nossa dor e as dores do outro são sempre algo que nos devasta ou que pode nos unir. Almejamos tratá-las e entender a causa delas.

Em tempos de intensas discussões acerca das reformas que prometem impactar os trabalhadores brasileiros, também é fundamental uma reflexão profunda sobre como a concepção de trabalho foi construída ao longo da história brasileira. Com as feridas escravistas abertas no país, surgiram diferentes tipos de "dores" que, até então, assolam o trabalhador que luta para sobreviver e alimentar as esperanças de um futuro mais brando.

O especial "Trabalhador", idealizado e produzido pelo LeiaJa.com, escancara os malefícios das "diferentes dores" dos trabalhadores brasileiros a partir da herança escravocrata no Brasil. Da primeira à quarta reportagem, mostramos como pobreza e desigualdade social estão fortemente atreladas às condições de trabalho de muitos brasileiros; em busca do sustento familiar, pessoas pobres são submetidas a atividades informais que exigem extrema força corporal.

Em ambientes insalubres, famílias inteiras ‘pescam sobrevivência’ em meio à lama. Nos lixões, ainda há quem se arrisque para comer. Nas ruas, bravos trabalhadores arrastam o peso das suas carroças em trajetos extenuantes. Mais do que dor física, são trabalhadores brasileiros que sentem as dores de um país desigual, da discriminação, da educação deficitária, da distribuição de renda ineficiente e dos ciclos de pobreza que teimam em se perpetuar. Na continuação do especial jornalístico, da quinta reportagem em diante descrevemos as dores dos trabalhadores "formais": as irregularidades trabalhistas, tais como fraudes e trabalho escravo contemporâneo.

Por fim, ouvimos especialistas, autoridades e integrantes de movimentos trabalhistas que traçam um panorama sobre o futuro do trabalhador brasileiro. Reforçamos, contudo, a necessidade das entidades públicas e governamentais olharem para o trabalhador pobre e à margem de uma sociedade justa e igualitária. Enquanto esses trabalhadores não tiverem seus direitos preservados, as dores persistirão, físicas ou sentimentais.

 

Da lama ao sustento do lar

Sob as águas poluídas do Rio Capibaribe, aguerridos trabalhadores pescam sururu. Insalubre, a atividade reúne famílias inteiras e revela um insistente ciclo de pobreza

Um rego estreito por onde correm filetes de esgoto. Nas brechas dos telhados, fios desordenados e uma bandeira brasileira que insiste em acompanhar a ventania mesmo em retalhos verdes e amarelos. No beco castigado pela falta de assistência sanitária, um porco corre ao lado de uma criança de no máximo cinco anos de idade; o pequeno sobrevive em um cenário de discrepância social tão comum nas nossas cidades. No fim do beco, água e lama, além de casebres de alvenaria. Esses, no entanto, são considerados um "luxo" ante as palafitas ribeirinhas. Perto da água, pés descalços, rasgados e feridos sobre afiadas cascas de sururu, a pesca que sustenta vidas e que até hoje reflete um insistente ciclo de pobreza que castiga centenas de trabalhadores.

Paulo Uchôa/LeiaJáImagens

Eis um trecho da comunidade Vila da Imbiribeira, próximo à Ilha de Deus, Zona Sul do Recife, onde os "deuses" ouvem clamores: bravos trabalhadores pedem força aos céus para enfrentar uma rústica atividade de pesca, responsável por garantir o pão de cada dia de aproximadamente 300 famílias. A tradicional cata do sururu, cuja polpa é apreciada nas praias pernambucanas e em restaurantes, é a principal e tradicional atividade dos moradores da Vila e da Ilha de Deus, em uma rotina que envolve homens, mulheres e, em um passado não tão distante, crianças. Árduo, o trabalho exige raça, além de um conhecimento compartilhado entre gerações: trata-se de uma atividade familiar e de sobrevivência, encarada por muitos como a única opção de renda.

Dura e afiada, a casca do sururu protege a polpa e fere mãos de trabalhadores. O molusco é encontrado submerso em marés ou rios, misturado em areia e lama; após a pesca e tratamento, o produto é vendido para comerciantes e restaurantes especializados em frutos do mar. De acordo com o Conselho Pastoral dos Pescadores em Pernambuco, a Vila da Imbiribeira e a Ilha de Deus são os maiores produtores da iguaria no Recife e Região Metropolitana, com aproximadamente 12 toneladas de polpa por mês e 30 toneladas de descartes mensais. Por trás dos números, perdura um trabalho que impressiona pela exigência corporal, em terrenos de difícil acesso e risco iminente de acidentes.

O insistente sorriso de Fábio Pereira de Lima – morador da Vila da Imbiribeira - é contraditório se relacionado ao ambiente onde trabalha e à dor da desigualdade social. Aos 32 anos, orgulha-se, no entanto, ao mostrar a pele marcada por cortes ocasionados pelas cascas do sururu, como sinal de força e resistência. Outras cicatrizes são de ferimentos em vidros e lixo. Sobretudo, nada que ofusque a força de vontade do pescador de sururu que desde criança se viu na obrigação de lutar por comida. Presenciou seus pais buscarem o sustento nas águas do Rio Jordão, na Ilha de Deus, e no emblemático Capibaribe, que corta o Recife. Nas comunidades ribeirinhas, o molusco sempre foi o único meio de geração de renda. "Tinha que pescar para vender sururu e comprar comida. Era a necessidade de botar o alimento na mesa", recorda Fábio, que vive com a esposa e dois filhos de 13 e oito anos.

Aos sete anos de idade, Fábio começou a pescar o molusco. Aprendeu todas as técnicas com o pai e demais parentes, além dos amigos que assim como ele não desfrutaram a infância em decorrência do trabalho precoce. "O trabalho é passado de pai para filho. Não largo minha vida de catar sururu, já vem no sangue. Aqui estamos perto dos nossos familiares, todos os dias juntos. A pessoa se vicia nesse trabalho. A necessidade obrigava eu ir pescar, porque às vezes não tinha comida naquela época, a gente trocava sururu por pacote de cuscuz e salsicha. Meu avô, avó, pai, mãe, tias, amigos, todo mundo sempre viveu disso. Na época eu não tinha barco e saía daqui até a ponte Motocolombó, no Centro do Recife, onde comecei a mergulhar", conta o pescador.

Antes mesmo de partir rumo à pesca, Fábio dedica-se aos minutos iniciais da longa e cansativa jornada de trabalho. Costumeiramente, os pescadores começam a preparar seus barcos ainda de madrugada; além da precária estrutura da embarcação, uma caixa de plástico, conhecida como galeia, é outro objeto de trabalho dos pescadores. É nela onde será colocado o sururu retirado da lama. Dezenas de homens partem da Vila da Imbiribeira e da Ilha de Deus em seus pequenos barcos, vestidos com roupas leves e sem nenhum tipo de equipamento de proteção que possa evitar ferimentos. Seguem pelo Rio Jordão, próximo das duas comunidades, com destino ao Rio Capibaribe, área central da capital pernambucana, em um percurso que dura em torno de 30 minutos. Esse é o momento "mais leve" do trabalho; daí por diante os corpos dos pescadores serão expostos a uma atividade que só os bravos resistem.

Um dos pontos mais propícios à retirada do sururu fica por trás dos que governam Pernambuco. Ironicamente, a bela arquitetura do Palácio do Campo das Princesas, onde o governador local dita sua gestão, assiste ao insalubre trabalho dos pescadores. No percurso até o Palácio, Fábio faz questão de mostrar cada bairro à beira do Capibaribe, além dos problemas que assolam o rio; o mais comum é a poluição. Habilidoso, o pescador desvia o barco dos lixos sobre as águas e da vegetação que aparece na superfície. Um descuido sequer pode ocasionar acidente. Após passar sob as principais pontes que ilustram o Centro do Recife, Fábio avista outros pescadores que desde madrugada já se lançam à lama em busca do sustento. O relógio marca quase 8h. Até que todo o trabalho seja finalizado, incluindo a pesca, lavagem, cozimento, peneiração e retirada da casca do molusco, o pescador enfrentará 12 horas extenuantes. A luta se repete de segunda a sábado, mas quando a renda não é suficiente, os trabalhadores ainda pescam em pleno domingo.

Ao lado de outros pescadores, Fábio ancora seu barco. Como em um rito, se lança à água do velho Capibaribe, segundo ele para adaptar o corpo à temperatura do Rio. Depois, volta à embarcação e amarra a galeia a uma madeira. Guarda o máximo de ar em seus pulmões antes de mergulhar. O pescador então pula, some sob a água escura e poluída do Capibaribe. Cerca de 20 segundos depois, coloca a cabeça na superfície e levanta os braços cheios de lama e entulhos. Tudo é jogado na galeia. Em seguida, mais dez mergulhos até encher a caixa. Fábio, então, volta ao barco, onde se esforça para recuperar a respiração. No pique do trabalho, senta-se em uma madeira, coloca os pés na galeia e remexe o apurado até que a água separe o sururu da lama. São quase 30 minutos repetindo o movimento até que as cascas cinzentas do molusco pareçam limpas. "O melhor momento de retirar o sururu é quando a água está baixa, porque fica mais raso. Ainda assim é muito cansativo", diz o trabalhador.

Paulo Uchôa/LeiaJáImagens

Tem dias que o corpo parece que está sendo esmagado com toneladas nas costas! Não é um trabalho para qualquer um. É sofrimento, precisamos ser fortes para aguentar um serviço desse. É ralação! E todo mundo faz isso aqui, é o nosso trabalho, a nossa fonte de renda.

Fábio Pereira de Lima – morador da Vila da Imbiribeira

Até que a galeia fiquei cheia apenas de sururu, o pescador precisa mergulhar cerca de 20 vezes e fazer a lavada com os pés; cada caixa cheia corresponde a cinco quilos do molusco. Para que o barco fique preenchido de sururu, o corpo de Fábio enfrenta as águas e lama do Capibaribe por, no mínimo, duas horas. Ele pesca, em média, 15 quilos do molusco por dia.

Companheiro de trabalho de Fábio e um dos mais experientes pescadores da região, José Francisco da Silva, 35 anos, emana cansaço. O ar que respira parece não suprir as necessidades do corpo. Desde criança, retira o sustento da pesca e demonstra não enxergar outro modo de vida. Na pele, escorrem suor e água do Capibaribe. Em sua história, foram escritos capítulos de um pobre trabalhador que não teve a oportunidade de dedicar-se aos estudos durante a juventude. Há tantos "Fábios" e "Josés" nesse mesmo contexto, submersos no rio, em meio à lama, em busca de uma renda sofrida, porém honesta. Além da física, existe uma dor sentimental de quem luta, diariamente, contra a pobreza e pelo sustento do lar.

É trabalho grande, meu irmão! Teve dia de quase eu morrer afogado aqui porque meu corpo cansou, deu câimbra. Cicatrizes tenho um monte. Todo mundo enfrenta isso todos os dias", relata Francisco, enquanto busca alívio para o corpo. Desde madrugada, foram dezenas de mergulhos.

José e outros pescadores são exemplos para Fábio. Segundo ele, os trabalhadores são prova de que pobreza não é justificativa para desonestidade. "É melhor estar aqui, trabalhando, mergulhando e catando sururu, do que roubar as coisas dos outros. Todos nós somos trabalhadores honestos; o dinheiro é pouco, mas é nosso", crava Fábio. Em períodos de "boas vendas", os pescadores comercializam o quilo do sururu ao preço de R$ 9. Em tempos difíceis, o apurado por quilo é de apenas R$ 5. Os valores obtidos são a única renda dos trabalhadores e de suas famílias, cuja maioria sobrevive com remunerações mensais inferiores a um salário mínimo. "É muito mergulho para conseguir dinheiro", diz Fábio. De acordo ele, no período de março a junho é praticamente impossível encontrar sururu, pois o molusco desaparece do rio por causa das chuvas. Em época de pesca fraca, ele e outros trabalhadores fazem "bicos".

Guerreiros e guerreiras: depois da pesca, mais insalubridade

O Rio Capibaribe é um dos principais pontos de atração turística da capital pernambucana, além de ser o ambiente de trabalho dos pescadores de sururu. É paisagem para fotos e lembranças históricas sobre a formação cultural e social da cidade. Pelas suas águas, uns buscam sustento, outros, belas fotografias. O Catamaran, a mais tradicional embarcação turística do Recife, navega calmamente pelo rio, ao som dos informes de um guia que relembra momentos históricos da Veneza Brasileira. No barco, famílias apreciam o passeio. Também se mostram surpresas ao presenciarem membros de outras famílias submersos na água escura para garantir o prato de comida dos filhos.

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Tão familiar quanto o passeio de Catamaran, a pesca de sururu reúne gerações. Trabalhadores sangue do mesmo sangue vivem em ciclos de trabalho e pobreza que teimam em não findar. Enquanto pescam ou limpam o molusco, reforçam o discurso de que querem ver seus filhos em outras profissões. De acordo com eles, a prioridade das crianças é a escola, no entanto, não raro encontramos os pequenos em meio ao ambiente insalubre, propícios a ferimentos ou doenças oriundas da falta de saneamento básico.

Ana Cristina Nascimento, de 31 anos, sabe bem o quanto será importante ter um filho dedicado à pesca de conhecimentos, debruçado em livros. Assim como outras centenas de trabalhadores e trabalhadoras do sururu, ela sentiu a dor de perder a infância pela necessidade de servir à catação do molusco: "Trabalho desde que me entendo por gente". Ana não estudou, mas aprendeu que na vida, quando há pobreza, trabalhar torna-se a opção. No mesmo Capibaribe por onde passeiam os turistas do Catamaran, a pescadora dedica-se à lavagem do sururu retirado da lama por um primo; são quatro incansáveis lavadas para encher apenas uma galeia. Moradora da Ilha de Deus, Ana estava grávida de cinco meses quando conversou com o LeiaJa.com. A gravidez, porém, nunca a impediu de ir ao duro trabalho.

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Questionada sobre os riscos de trabalhar em plena gravidez, Ana é rápida na resposta: "Pescador não fica doente". Símbolo da força feminina, a pescadora sente os efeitos do cansaço, mas não se dá direito ao descanso. Tempo é ouro para ela e os demais pescadores, porque é preciso vender o sururu para garantir o dinheiro da família. Em todo o processo de trabalho, as mulheres, descritas como marisqueiras, têm um papel fundamental na lida da catação. Boa parte delas não mergulha para pescar, mas dedica horas e horas à limpeza do molusco, além do cozimento que facilita a higienização da polpa.

No retorno de Fábio e dos demais pescadores às comunidades, se inicia o restante do trabalho. As marisqueiras recebem todo o sururu catado do Rio Capibaribe e de outros pontos de pesca, começam o cozimento para higienizar e facilitar a abertura das cascas do molusco em função da retirada das polpas. Aos 18 anos de idade, Flávia Rafaela Marques trabalha no centro de uma estrutura de madeira na Vila da Imbiribeira. No local, a fumaça do cozimento impede uma respiração sadia e torna o ambiente ainda mais insalubre. Há risco de queimadura, além de doenças respiratórias. Na pele, o suor reflete a exaustão do corpo. "Passo mais de três horas nesse calor para ajudar meu irmão e minha mãe. A gente vive do sururu. Já queimei as mãos várias vezes, me cortei também. Depois, ainda vou peneirar as polpas para retirar o restante das cascas e da sujeira", descreve a trabalhadora. Flávia afirma que cursa o terceiro ano do ensino médio e vislumbra a possibilidade de atuar em outra profissão. Na lida do molusco, ela ganha pouco mais que R$ 10 por cada galeia submetida ao cozimento e à peneiração.

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O irmão da jovem Flávia, Everaldo Marques do Nascimento, também sofre os efeitos do calor em virtude do fogo durante o cozimento do molusco. O rapaz de 25 anos dedica sua vida ao trabalho do sururu, de onde garante a comida da esposa e do filho de apenas oito meses. Segundo o pescador, toda sua rotina profissional, que vai da pesca ao repasse do sururu aos comerciantes, dura mais de 12 horas por dia. No final do mês, a renda que garante o sustento da família fica em torno de R$ 600. "Para aguentar o trabalho peço muita força a Deus. Tem que ter vontade, porque senão a gente não consegue trabalhar. Só aqui no cozimento fico três horas, sem contar o tempo que passo no rio pescando e depois descascando. Na infância ainda estudei até a sexta série, mas tinha mãe solteira e precisava ajudar em casa", recorda Everaldo.

Depois do fogo, Everaldo dedica-se à peneiração do sururu. Ele e outros trabalhadores peneiram as polpas para separá-las dos descartes inapropriados para o consumo. São pelo menos mais três horas de procedimento, até que o produto esteja higienizado e pronto para ser vendido aos comerciantes que utilizarão o sururu como ingrediente principal de cardápios gastronômicos.

Rosicleide da Silva, 31 anos, também integra o grupo das marisqueiras da Vila da Imbiribeira e da Ilha de Deus. Sua história é semelhante às dos demais trabalhadores, pois foi vítima do trabalho infantil e até hoje carrega os efeitos da falta de estudo. Vive do sururu, cuja renda mensal gira em torno de R$ 500. Ao lado do marido, que também é pescador, luta diariamente para garantir o sustento dos seus cinco filhos, todos menores de idade. "Trabalho desde as cinco da manhã! Nunca estudei, só trabalhei do sururu. Não sei ler, perdi o estudo, só catei marisco (sic). Só que não quero que meus filhos trabalhem, todos estudam, disso eu faço questão. Hoje me arrependo muito de não ter estudado", conta Rosicleide. Em um trabalho que exige paciência e muita atenção, Rosicleide vai retirando todas as cascas restantes do sururu após o cozimento e peneiração. Ela já perdeu a conta de quantas vezes sofreu cortes durante o procedimento. A marisqueira diz ainda que chega a manusear 15 quilos do molusco todos os dias, durante cerca de três horas. De acordo com os pescadores, como todo o trabalho é familiar, os valores apurados nas vendas são divididos entre os integrantes das famílias que participam do processo.

"O remédio é a lama"

São décadas de vivência com a pesca. Experiência que garante à Maria das Dores da Silva, tia do pescador Fábio, o dom de ensinar aos parentes como sobreviver do sururu. Não à toa, a sobrevivência dela e dos familiares é exclusiva do trabalho árduo, porém desvalorizado do ponto de vista de quem sonha em se aposentar. Das dores causadas pelas feridas na pele, nenhuma é maior que a incerteza de uma renda fixa quando o corpo de Maria não aguentar mais o extenuante trabalho. Dona Maria, de 56 anos, mora na Vila da Imbiribeira. Todos os seus parentes também vivem da pesca do sururu. "Nasci e me criei aqui! Sempre vivi do sururu. Mergulhei na maré, ainda hoje cato marisco, trabalho para comer... Não consigo pagar o INSS e até hoje, pelo que vejo, não vou conseguir me aposentar. A pesca do sururu é um trabalho sofrido, passa a hora de comer, a gente se corta na maré e o remédio é a lama. A melhora foi só o motor do barco, porque antigamente todo mundo tinha que remar", descreve a trabalhadora.

De acordo com Maria, ela não possui condições financeiras de arcar com as contribuições do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Também não tem registro de pescadora, documento que teoricamente garantiria a possibilidade de ela tentar se aposentar como profissional da pesca. Só carrega, contudo, uma incerteza de quem não sabe se terá ao menos alimento para sobreviver dignamente.

Segundo o educador social da Pastoral dos Pescadores em Pernambuco, Severino Antonio dos Santos, a pesca de sururu reúne condições extremamente insalubres e que refletem o quanto os trabalhadores batalham para garantir o sustento das suas famílias. "É um trabalho que dura 12 horas por dia! Na questão da insalubridade existem vários aspectos: um é no processo de pega do molusco, quando os pescadores mergulham no rio e nem sempre a água é adequada para o mergulho, como no Capibaribe, um dos rios mais poluídos da cidade. Há descarte de esgoto e o trabalhador fica propício a doenças. Depois de passarem três, quatro, cinco horas mergulhando, voltam para casa e não tomam banho, porque continuarão trabalhando. Tem a questão do fogo, onde há fumaça e grande risco de queimadura", opina o educador social.

Sobre a dificuldade dos pescadores de sururu em se aposentar, Severino atribui o problema a deficiências no poder público que gere o trabalho da pesca no Brasil. "Existe uma deficiência do órgão de gestão da pesca a nível nacional como um todo. Nos últimos anos, o setor responsável pela pesca já mudou em três ministérios. Em 2015 o Ministério da Pesca foi extinto e a gestão passou para a Agricultura. Esse funcionou de outubro de 2015 até maio de 2016. Depois a pesca passou para o Ministério da Indústria e Comércio. Quem tinha registro de pescador anterior a 2014 continuou com o documento para validação. Quem não tinha e estava pedindo registro pela primeira vez não conseguiu, porque desde 2014 não foi permitida a emissão de registro no Brasil como um todo. Em Pernambuco temos uma média 6 mil solicitações que não foram emitidas", explica o educador social da Pastoral dos Pescadores.

Paulo Uchôa/LeiaJáImagens

Em publicação no Diário Oficial da União em janeiro deste ano, o governo federal regulou a autorização temporária para o Registro Geral da Atividade Pesqueira, na categoria Pescador Profissional Artesanal. "A medida terá validade até a finalização do recadastramento geral pelo Sistema de Registro Geral da Atividade Pesqueira (SisRGP), cujos os registros iniciais estão suspensos desde 2015 por recomendação dos órgãos de controle", informa o governo.

De acordo com a publicação, durante esse período, "serão válidos para o exercício da atividade pesqueira junto aos órgãos de controle e fiscalização os protocolos de solicitação de Registro Inicial para Licença de Pescador Profissional Artesanal, entregues a partir de 2014, e os de entrega de Relatório de Exercício da Atividade Pesqueira (REAP) que ainda não foram devidamente analisados e regularizados pelos Escritórios Federais de Aquicultura e Pesca dos Estados (EFAPs)". Por outro lado, não serão aceitas as licenças suspensas em decorrência da falta de entrega do REAP ou por não serem protocoladas no prazo considerado legal, bem como não serão aceitas as licenças já regularizadas.

A publicação do governo federal traz ainda a seguinte informação. "A regularização prevista pela portaria nº 2.546/2017 também servirá como comprovante de regularização para fins de recebimento de benefícios previdenciários. No entanto, não dá direito aos pescadores requererem o seguro defeso". "De acordo com a Secretaria da Aquicultura e Pesca do MDIC, essa medida veio atender a uma lacuna no setor, em decorrência da publicação da Portaria nº 2.078, de 18 de outubro de 2017, que revogou a Portaria 1.275, que tornava válidos os registros de pesca suspensos ou não analisados existentes no SisRGP", complementa o informativo.

O educador social da Pastoral dos Pescadores em Pernambuco esclarece ainda que só o registro não é suficiente para a aposentadoria dos pescadores de sururu. De acordo com ele, os trabalhadores devem comprovar que atuam na função há pelo menos 15 anos por meio de alguns documentos, tais como título eleitoral, certidão de reservista, declaração escolar, cartões de postos de saúde, entre outros, desde que tenham declarado a profissão de pescador. Além disso, homens devem comprovar idade mínima de 60 anos, enquanto as mulheres precisam ter, pelo menos, 55 anos.

Ainda de acordo com Severino, no ano passado o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais em Pernambuco entrou com uma ação civil pública que obrigava o governo federal e o Governo do Estado a gerirem a pesca, ao ponto de liberarem registros de pescadores para os trabalhadores que precisam do documento. Segundo o educador social, os governos recorreram e o processo ainda não teve uma decisão final.

Em Pernambuco, os pescadores recebem apenas incentivo financeiro por meio do programa Chapéu de Palha, da gestão estadual, cujo valor é de R$ 281,90 mensais para pescadores. Além dos pescadores, são beneficiados trabalhadores dos setores da cana de açúcar e frutas. Segundo o Governo do Estado, o Chapéu de Palha beneficia 6.591 trabalhadores da pesca artesanal.

 

Para ter o que comer, catadores mergulham no mar de lixo

Lixões ainda são a principal alternativa de trabalho e moradia dos catadores de material reciclável. Em busca do sustento, trabalhadores migram de uma cidade para outra em um ciclo de dependência do lixo

*Por uma decisão editorial do LeiaJa.com, após um acordo ético estabelecido com as fontes entrevistadas, a equipe de reportagem decidiu utilizar nomes fictícios para descrição do material publicado e não revelar os locais onde foram realizadas as gravações para preservar os trabalhadores.

A poeira alaranjada do chão de barro começa a subir, as moscas se agitam no entorno e a correria inicia. Com sacos de plástico em mãos, todos os trabalhadores se preparam para correr ao encontro do lixo. Alguns não esperam e já se penduram na parte traseira dos caminhões, enquanto trafegam pela estrada que dá acesso à parte central do lixão. A disputa por cada metro quadrado é agitada, a ansiedade dos trabalhadores é resultado do desespero sem precedentes. Todos aguardam o momento mais esperado com olhos atentos à traseira do veículo. O caminhão se posiciona de ré, a trava é liberada por funcionários de uma prefeitura e aos poucos as sacolas de lixo vão caindo lentamente da caçamba ao chão, saco por saco, um por cima do outro. Na disputa pelo melhor material, eles mergulham literalmente no mar de resíduos.

"A gente trabalha tanto dentro do lixão, dia e noite, a gente constrói casas e mora aqui escondido porque nem todo mundo teve oportunidade. Parece até que somos lixo descartado, também". A fala do "baguiador", como é conhecido o catador de material reciclável - antes de lixo -, não só narra a dura realidade enfrentada por essa categoria de trabalhadores, mas expõe também a sensação de estar à margem da sociedade brasileira.

Retrato da exclusão social e da falta de oportunidades no sistema de emprego formalizado, o catador do lixão se isolou em grandes terrenos descampados para se esconder, muitas vezes, da dor e opressão psicológica ou física que sofre fruto da desigualdade social no Brasil. Dados de 2015 do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), revelado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), destacam que o Brasil aparece entre os dez países mais desiguais do mundo.

Com uma rotina extenuante de trabalho braçal, em algumas situações de domingo a domingo, e muitas vezes sem momentos de descanso, homens, crianças, mulheres, idosos e diferentes perfis de pessoas catam os materiais recicláveis. Eles dividem o espaço de trabalho com muitas aves, principalmente urubus, que sobrevoam em círculos a todo instante em busca de alimento. Porcos, cavalos e cachorros também permanecem no entorno do lixão por causa da comida. A maioria dos bichos pertence a alguns trabalhadores que utilizam os animais como outra forma de renda ou locomoção. Outros animais soltos aparecem por causa do cheiro forte do chorume e pela quantidade de lavagem despejada nos sacos de lixo que são trazidos das residências.

Insalubre, inóspito, perigoso, penoso e outros tantos adjetivos são utilizados pela literatura para descrever o ambiente do lixão e a rotina dos trabalhadores que lá habitam e dele sobrevivem. Tentar uma primeira aproximação com esses catadores não é uma tarefa fácil, visto que o ambiente é de desconfiança e medo. Eles dizem temer o fechamento do local, que oficialmente não deveria existir. A Lei nº 12.305/10, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), visa extinguir os lixões em todos os municípios do Brasil e viabilizar a criação de aterros sanitários, para a destinação final ambientalmente adequada dos rejeitos.

Chico Peixoto/LeiaJáImagem

O relógio marca pontualmente 10h e para muitos catadores, o momento é de rara pausa, já que a partir das 11h o fluxo de caminhões aumenta. Para fugir por alguns minutos da forte temperatura, Carlos*, 41 anos, senta ao lado de alguns colegas de trabalho embaixo de um guarda-sol. Com cuidado, organiza seu material de trabalho e remexe na sua sacola de reciclagem para mostrar o que já juntou durante a semana. Visivelmente exausto e com tom de voz mais ameno, o trabalhador diz estar cansado do lixo.

Aos 11 anos, Carlos* começou a trabalhar no lixão. Perambulou entre vários deles em Pernambuco. Quando um fechava, ele seguia para outro na migração coletiva que é comum na rotina de catadores. "Trabalhei por muitos anos no antigo lixão da Muribeca, lá era um mundo à parte. Era tudo muito organizado, tinham cooperativas, preços fixos e mesmo que fosse muita gente, a quantidade de lixo era enorme, vinha tudo do Recife. Aqui, agora, é cada um por si", relembra. Um relatório divulgado pelo Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE) em 2018 aponta que dos 184 municípios pernambucanos, 114 ainda depositam os resíduos sólidos em lixões. Um total de 62% das cidades descumpre a Lei Federal que determinava a construção de aterros sanitários em todas as cidades do país até agosto de 2014. No lixão onde Carlos* trabalha, ele arrisca que existem mais de 200 catadores dia e noite, mas não confirma o dado porque chegam novas pessoas todos os dias.

Viver é difícil. Eu digo isso porque não foi a crise que piorou minha história, ela sempre foi de muita dificuldade. Quando encontro seleção de emprego, são 400 pessoas para uma vaga, também não tenho muito estudo, minha solução seria trabalho com força. Só que machuquei a perna e não posso mais carregar nada pesado. Me restou catar materiais recicláveis no lixo para não morrer de fome, não pode fechar isso aqui. A gente não tem o que fazer.

Lamenta o trabalhador, que recicla plástico e alumínio.

Atualmente, o salário mínimo brasileiro é de R$ 954. Para conseguir essa renda, Marcelo, outro trabalhador do lixão, teria de dobrar sua jornada de trabalho. Por semana, ele consegue lucrar R$ 100 ou R$ 150, se trabalhar das 9h às 17h, de segunda a sábado. Dados do último Censo indicam que a renda média em 2010, segundo os próprios catadores, era de R$ 571,56. No Nordeste, o valor era de R$ 459,34. "No fim de semana, uma empresa recolhe tudo e nos paga. Antigamente, eu vivia melhor porque tinham menos pessoas aqui, mas hoje é muita gente dependendo do lixo. Mas, eu prefiro não expor minha realidade porque se a prefeitura vier fechar tudo, o que vamos fazer? Algumas vezes, os homens vieram aqui e saímos corridos, descendo por esses barreiros correndo feito bandidos", denuncia.

Chico Peixoto/LeiaJáImagem

De acordo com o Censo Demográfico de 2010 do Brasil, 387.910 pessoas exercem a atividade de catador de material reciclável como principal fonte de renda. O valor, no entanto, pode estar abaixo do quantitativo real porque os fortes traços da informalidade causam variações no ambiente deste setor. A região Nordeste concentra o segundo maior número de catadores do Brasil, são 116.528. "Já quanto à questão racial entre as pessoas que trabalham com a coleta e reciclagem de resíduos sólidos no Brasil, os dados mostram que a participação de negras e negros representa 66,1% do total. Ou seja, duas em cada três pessoas que exercem essa atividade se identificam como negras e negros", diz trecho de pesquisa publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2013.

Segundo a mestre em extensão rural Maria Augusta Amaral, que já realizou vários trabalhos de pesquisa com catadores de materiais recicláveis em Pernambuco, a problemática dos lixões no Brasil é complexa porque não envolve só o meio ambiente, mas também a questão social dos catadores. "Um dos motivos que eles não concordam com o fechamento do lixão, além do desemprego, é que muitos têm vergonha de realizar os trabalhos expostos nas ruas, de casa em casa, porque no lixão eles estão escondidos. As prefeituras não podem agir de forma irresponsável. É preciso educar esses trabalhadores no intuito de quebrar paradigmas e inseri-los em um contexto de trabalho em grupo, em locais mais propícios à catação. Não adianta o poder público tentar obrigar essa categoria a entrar em cooperativas de um dia para o outro. Existe uma série de trabalhos sociais que precisam ser tomados com cautelas", detalha Maria Augusta, que aposta em uma solução equilibrada.

Na avaliação da estudiosa, quando o fechamento dos lixões é feito de forma arbitrária, o ciclo de migrações em torno do lixo cresce. "Os catadores saem de um e vão para outro ou continuam escondidos", afirma. Maria Augusta também alerta para uma série de riscos à saúde por causa dos ambientes onde os trabalhadores estão inseridos. Contato com ratos e moscas, mau cheiro, fumaça e levantamento de peso, risco de quedas, exposição ao calor, cortes, mordidas de animais, contaminações e outros. A atividade é considerada insalubre em grau máximo, de acordo com a Norma Regulamentadora do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), exigindo maiores cuidados em termos de equipamento de proteção e disponibilidade de locais adequados para o trabalho.

A Secretaria da Micro e Pequena Empresa, Trabalho e Qualificação (SEMPETQ) do Estado do Pernambuco em parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego criou o Projeto Rescate. A iniciativa atua com empreendimentos econômicos solidários e redes de cooperação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis na Região Metropolitana do Recife e na Zona da Mata Norte.

O objetivo do Rescate é fortalecer a organização produtiva dos catadores e a importância do trabalho que eles realizam para o meio ambiente e a sociedade, além de gerar renda e superação de situações de pobreza extrema em várias cidades.

"Com o projeto, queremos identificar que catador é esse, fazer um diagnóstico de seu trabalho traçando um perfil dessas pessoas, além de incluí-los em programas sociais nacionais e regionais. Muitos não têm documentos, são analfabetos, e por isso, precisamos dar esse suporte", explica Maria Augusta, que atualmente é uma das responsáveis pelo Rescate.

 

Sem um lar fixo, catadores dormem dentro do lixão

Barracos montados no improviso com lonas pretas de plástico, lençóis rasgados, pedaços de madeira e alguns móveis velhos estão localizados no topo do barreiro. Todos os materiais utilizados nas construções simples são reciclados dos amontoados de lixo despejados por caminhões pelo menos quinze vezes por dia na parte central do terreno. São moradias temporárias ou fixas dos que trabalham diariamente neste lixão, localizado em Pernambuco.

Chico Peixoto/LeiaJáImagem

Não fossem os casebres, o local seria completamente descampado e sem sombra. Um aplicativo do celular calcula a temperatura atual na área e o resultado é entre 35 e 39 graus. Para se proteger do sol, prevenir queimaduras e doenças na pele, os catadores de material reciclável se vestem com trajes típicos de regiões mais frias, embora o calor seja desesperador. Casacos de couro ou tecido grosso, bonés, toucas pretas, botas de plástico, luvas e camisas amarradas na cabeça para tapar o nariz. Na maioria dos casos, apenas os olhos ficam de fora para localizar as melhores sacolas e objetos.

Os primeiros registros de catadores convivendo em espaços espalhados nas pequenas e grandes cidades datam do século 19 e acompanhou a modernização e urbanização do país. Com uma série de restrições no mercado de trabalho e inseridos em um contexto de sobrevivência por meio da forma mais imediata e viável, os catadores estão dentro do ciclo da informalidade, sem nenhum registro oficial.

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Longe de onde as legislações são aprovadas ou discutidas, a realidade prática do catador de material reciclável pernambucano Marcelo*, 19, é dura e sua maior esperança é terminar mais um dia vivo e com saúde. Ele vive nas proximidades do lixão e leva cerca de trinta minutos para chegar ao local de trabalho, cortando caminho por dentro dos matos. Às 6h, pontualmente acorda e por volta das 7h sua jornada de trabalho tem início. Daquela hora em diante, assume uma postura séria, coloca os fones de ouvido para se distrair do trabalho pesado que vai enfrentar até as 17h, com pausa de 15 minutos para almoçar.

Vestido com calças jeans já surradas, camisa de manga longa e luvas mais grossas, *Marcelo é responsável por recolher o máximo de papelão que conseguir, quanto mais, melhor será sua remuneração no fim da semana. O catador vende o material reciclável por R$ 0,15 o quilo para um "atravessador" dono de um depósito. Ele conta que em uma semana produtiva, em dez horas da sua jornada de trabalho, ele consegue lucrar R$ 200. Para isso, tem que catar, recolher e colocar em grandes sacos que somam mais de uma tonelada de papelão.

A rotina se repete de segunda até sexta de manhã e à tarde. À noite e nos fins de semana estuda e em 2018 pretende concluir o ensino médio e passar em um concurso para atuar no Corpo de Bombeiros ou na Polícia Militar de Pernambuco. Ainda criança, Marcelo* e o irmão mais novo fugiram com a mãe por causa de diversas atitudes violentas de seu pai. Com pouco dinheiro e muitas dificuldades financeiras, viram no lixão uma fonte em que a renda não demorava, apesar de pouca.

"No início, eu fui trabalhar no lixão para alimentar os porcos que minha mãe criava. Eu juntava lavagem para dar de comer aos bichos e levava para casa. Depois, aos 14 anos, queria dar um descanso para minha mãe parar de trabalhar na casa dos outros e decidi que era o momento de trabalhar de verdade", recorda o trabalhador.

"É muito cansativo. Tem dia que eu chego em casa com os braços e com as pernas tão cansados que não consigo nem tirar a roupa, eu desmaio na cama. Mas, tem dia que consigo tomar um banho e descansar", descreve Marcelo*.

Marcelo* foge do estereótipo dos catadores que encontrei durante as entrevistas. Com boas perspectivas de um futuro diferente, longe do lixão, ele diz que a força de vontade é maior do que os empecilhos. "Eu pego muito germe lá porque a gente não sabe o que tem no lixo. É serviço pra doido. Aquilo dali não é vida pra ninguém não. Vamos pra lá porque a gente precisa. Tem gente nova, velha, pessoas que precisam se alimentar. Tem que correr atrás. Aproveito agora que estou novo para investir em mim porque tenho saúde. Tenho fé em Deus que vou conseguir um emprego", diz em tom esperançoso.

A força, garra e visão de futuro de *Marcelo não são, no entanto, maioria nos lixões. Muitos trabalhadores estão lá porque já perderam as esperanças de mudar de vida. Impregnaram-se no que lhes foi proporcionado ao longo dos anos. A catadora Maria*, 28, desconhece outras fontes de renda no mercado de trabalho. Aos oito anos, veio com os irmãos e o pai trabalhar separando material reciclável para revender. Desde então, 20 anos se passaram. Mãe de cinco filhos, ela conta que todos foram criados com o dinheiro que conseguia das vendas. "A nossa rotina é aqui porque se não fosse assim a gente passaria fome", afirma.

Com as mãos enluvadas, ela veste o casaco que acabou de achar no lixão. Reaproveitar roupas é algo comum. Ela garante ter encontrado quase todas as vestes nos sacos de lixo. "Aqui o povo encontra de tudo. Feto morto, celular, dinheiro, comida boa, roupas, móveis. Já vi gente achar muito dinheiro e voltar no outro dia. Parece até que a gente se acostumou a estar dentro do lixo catando", lamenta Maria*.

O encerramento do lixão onde trabalha é um dos piores pesadelos para Maria*. "É muito cansativo essa rotina, o sol acaba com a gente, com a nossa pele. A gente carrega de saquinho e saquinho e vai enchendo nossos bags. Já vieram fechar várias vezes. Ficamos escondidos e os guardas nos botaram para correr. Eles roubaram nosso material ou tocavam fogo, mas nunca desistimos. Eu não sei ler, como é que vou trabalhar? O mercado não vai me querer, eu não sei ler", relata a trabalhadora. Dados publicados pelo Ipea apontaram que entre as catadoras e os catadores do Brasil o percentual de analfabetismo é 20,5%. A região Nordeste apresentou a situação mais grave, com 34% desses trabalhadores se declarando analfabetos.

Maria* caminha cerca de uma hora até chegar ao lixão e sua jornada de trabalho é das 7h às 17h. Ao longo da semana, traz marmitas de casa com feijão, arroz e cuscuz. Quando encontra carne ou frango durante a catação, logo separa em um balde para ferver em casa e incrementar na refeição. "Eu já trabalhei em cooperativa, mas prefiro cada um por si, porque quanto mais a gente se esforça nosso lucro aumenta. Tem mês que tiro R$ 400 ou R$ 300", pontua.

Sobre a quantidade de lixo que as pessoas produzem todos os dias, a catadora é taxativa: "Se as pessoas pensassem melhor, doavam em vez de jogar fora. Eu sei que a gente precisa de comida, mas tem muitos precisando mais do que nós. Eles preferem jogar no lixo".

Catadores do lixão, principais agentes ambientais

A catadora Josefa*, 54 anos, não quer outro emprego, não quer melhorar de condições, não tem grandes anseios. Seu único sonho é parar de trabalhar e nunca mais ter que vir ao lixão outra vez. Ela nasceu na cidade de Limoeiro, no Agreste de Pernambuco, e já perdeu as contas da idade que começou a trabalhar. Mas, lembra que foi pouco depois dos dez anos com uma enxada na terra.

Chico Peixoto/LeiaJáImagem

"Cheguei aqui porque precisava levar lavagem para casa. Colocava tudo em um saco grande e carregava na minha cabeça. Quando percebi que o lixo também podia ser uma fonte de renda, me instalei aqui e essa é minha carreira", brinca a catadora. Vestida com o jaleco de uma enfermeira que achou no lixão e sempre com um boné para se proteger dos fortes raios solares, Josefa* trabalha onze horas por dia.

"Minha única folga é no domingo, quando arrumo minha casa, lavo as roupas e descanso. São muitas dores, a gente que é trabalhador sofre demais nesse Brasil", lamenta.

Sem perspectivas, ela diz que ainda faltam muitos anos para a tão sonhada aposentadoria e até lá não sabe se estará viva. Josefa é experiente e já viu o lixão passar por vários momentos. A catadora sabe da importância para natureza dos trabalhadores que separam os materiais recicláveis. "A gente cuida do meio ambiente, mas isso não é visto, ninguém sabe do nosso trabalho porque somos descartados", diz.

Se por um lado os catadores são os principais agentes ambientais responsáveis pela reciclagem e transformação do lixo em mercadoria de interesse das indústrias, por outro, a posição de marginalidade que ocupam na sociedade e as poucas oportunidades de formalização trabalhista são carências sociais que interferem diretamente na autoestima desses trabalhadores.

"Apenas 2,4% de todo o serviço de coleta de resíduos sólidos urbanos no Brasil são realizados de forma seletiva, sendo todo o restante realizado como coleta regular, na qual se misturam e se compactam todos os materiais conjuntamente, dificultando ou até mesmo impossibilitando a reutilização/reciclagem de parte destes materiais", consta em trecho de pesquisa realizada pelo Ipea (2010).

De acordo com o promotor de Justiça André Felipe de Menezes, do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), existe a preocupação em manter a figura do catador como elemento central em todas as políticas públicas na área ambiental. "Muito antes de se falar na política nacional de resíduos, o catador já existia, mas era invisível. Essa visibilidade começou a surgir porque antes eles eram catadores de lixo e hoje são de material reciclável. Essa mudança de status já é perceptível", conta Menezes.

"O que eles fazem é um serviço ambiental que merece ser remunerado. Se não fossem os catadores durante todos esses anos a fio realizando a catação, imagine o volume de lixo que existiria no mundo todo. O catador tem sido um verdadeiro herói. Hoje, pelo MPPE, ele é visto como um prestador de serviços ambientais e pode ser remunerado desde que esteja organizado em cooperativas e associações", complementa o promotor do MPPE.

As mulheres de Aguazinha

Catadoras que trabalharam uma vida inteira no extinto lixão de Aguazinha, em Olinda, reclamam que após o fechamento do local foram esquecidas pelo poder público

Rafael Bandeira/LeiaJáImagem

É agosto de 2017 e a sensação é de tristeza e desesperança. Praticamente um suplício para trabalhar mesmo sentindo dores, para ter o que comer e sustentar a família. Moradias com móveis e afetividade de uma vida serão destruídas. Após mais de 30 anos funcionando às margens da II Perimetral, o lixão de Aguazinha, em Olinda, Região Metropolitana do Recife, encerra suas atividades. O dia mais triste da vida da catadora de material reciclável Adriana Gomes, 41 anos, foi estampado na capa dos principais jornais de Pernambuco. O local foi cercado por muros e o portão, fechado.

Maria José Pocidônio da Silva, 53, criou os 14 filhos dentro do lixão de Aguazinha. Era dona de um barraco que orgulha ter construído no Morro do Cuscuz, nome de onde ficavam localizadas as moradias dos catadores. Uma vida inteira dedicada à reciclagem e a sobreviver de migalhas. Ela conta que quando o local começou a ser fechado, alguns conseguiram ser indenizados por causa da moradia que seria destruída. Em 2018, a tão sonhada casa de Maria José chegou a sua mão através das chaves, ainda novinhas. O apartamento fica localizado no conjunto habitacional Vila Brasília, no bairro de Peixinhos, em Olinda, a menos de um quilômetro do extinto lixão.

Maria José mostra a conta da Compesa, no valor de R$ 40. Ela diz que não tem condições de pagar porque sua renda era dentro do lixão - Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Na teoria, a ideia de morar em um local próprio com estrutura boa, quartos, piso de cerâmica, banheiro, paredes limpas e saneamento básico era um dos sonhos da catadora. Mas, após pouco mais de um mês residindo no local, problemas já ameaçam sua permanência. "Eles nos jogaram aqui e agora querem que a gente pague todas as contas, sendo que estamos desempregados desde o fechamento do lixão. É conta de água da Compesa, de energia. Mas, a verdade é que a água é muito ruim e já peguei até sarna. O esgoto escorre com cheiro horrível na frente de todos os prédios", lamenta.

As mulheres de Aguazinha também criticam a decisão de incluir outras comunidades dentro do habitacional, que de acordo com elas, só deveria abrigar a população do lixão. Nos 400 apartamentos, os beneficiários são oriundos de comunidades de risco, como o Morro do Cuscuz, Ilha do Maruim, comunidade Carlos Melo e Caixa D’água. "Muita mãe de família morreu esperando um lar, eu sei que tem muita gente em situações difíceis, mas se a promessa era fechar o lixão e colocar todo mundo aqui, eles tinham que cumprir", diz Maria José.

Na conta da Prefeitura de Olinda, o fim do lixão representa lucro. O município voltou a receber o ICMS ambiental. Em 2015 e 2016, por causa da falta do repasse governamental, o prejuízo foi de R$ 6 milhões por ano. No bolso dos catadores, o rombo foi muito pior. Dor, suor, desgaste, jornadas de trabalho que ultrapassaram o limite físico do corpo para conseguir um apurado mensal de R$ 300.

Na época do fechamento, a Prefeitura de Olinda negou que os catadores ficariam desamparados. Na teoria, eles seriam inseridos em grupos organizados, como a Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis (Coocencipe).

"A equipe de Educação Ambiental da Prefeitura irá disponibilizar capacitação nas áreas de coleta seletiva, ecoempreendedorismo ambiental, oficinas de agricultura familiar, entre outros treinamentos. Além disso, o governo municipal vai oferecer atendimento aos filhos dos catadores para cadastrá-los, posteriormente, em programas sociais, como o Bolsa Família", diz um trecho da nota enviada à imprensa em 2017.

Poucos meses após o fechamento do lixão de Aguazinha, em fevereiro de 2018, as mulheres catadoras dizem que foram as mais prejudicadas porque ficaram desempregadas e a promessa de suporte da gestão municipal ficou só na teoria.

Dor e abandono, o legado de quem descobriu o sentido da palavra "trabalho" na catação dentro dos lixões

Alexandre Santos, 42 anos, foi catador por duas décadas. E para ele, o prejuízo da falta de apoio governamental foi grande. Anos sem a carteira de trabalho assinada e uma perna deficiente após uma das máquinas de esteira que recolhia o lixo o acertar. Estava escuro e ele não foi visto, assim como muitos outros invisíveis. Ele ainda não conseguiu se aposentar por invalidez, mas segue na trajetória rumo à conquista de um direito que lhe é garantido.

 

Em passos apressados pela sobrevivência, Lula vence a peleja de cada dia

Carroceiro percorre pelo menos 14 km a pé, em jornada de trabalho que dura, em média, 12 horas. Seus passos apressados ganham as ruas do Recife antes de o sol brilhar

Eu cato papel mas não gosto, então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando.

Carolina de Jesus, Quarto do Despejo

Nem bem o sol se levanta para que seus primeiros raios sejam derrotados pelas retinas de um olho cego. Quando a luz do astro é refratada por um par de garrafas de whisky ou reflete nas páginas escancaradas do romance "Memórias de Um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida, todos acomodados no fundo da carroça de Aloísio Basílio dos Santos Filho, é porque já foi derrotada por ele. Lula, como é conhecido o carroceiro, precisa sair de casa quatro horas manhã para, antes dos carros responsáveis pela coleta municipal que saem às ruas com o amanhecer, recolher os resíduos deixados nas vias de pelo menos quatro bairros da Zona Norte do Recife.

Nascido em algum lugar do interior do Piauí, Lula não sabe ao certo de onde vem, mas sabe que ficou cego do olho esquerdo ainda nas primeiras semanas de vida. "Foi um transplante de sangue errado, quando eu era novinho. Depois, meus pais arrumaram trabalho pra cá e a gente veio embora. Meu RG tem Recife", conta. As primeiras memórias permeiam o Bairro do Arruda, onde o carroceiro cresceu e atualmente vive. "Eu gostava de ir para o jogo do Santa. Lembro de coisa boa e de coisa ruim. Da violência no bairro", conta enquanto inicia seu itinerário debaixo de uma das arquibancadas do Estádio José do Rêgo Maciel, na Avenida José dos Anjos, no Recife.

Imitando a mitologia grega, em que o olho direito de Hórus é a representação do próprio sol, da energia masculina e racional, no cotidiano de Lula ele precisa assumir sozinho a árdua tarefa de identificar, à distância, os materiais recicláveis daqueles que já não servem. A agilidade da coleta é impressionante mesmo nas segundas, terças, quintas-feiras e sábados, dias em que o lixo é descartado e o carroceiro costuma se deslocar do Arruda com destino à Casa Forte, passando pelos bairros da Encruzilhada, Rosarinho, Tamarineira e Casa Amarela. "Recolho a reciclagem, separo e levo para vender: com um quilo de papelão ou de vidro, ganho R$ 0,15 centavos e com um quilo de plástico, R$ 0,50 centavos", conta.

Nas avenidas principais, também demanda atenção o intenso fluxo de veículos, que passam a centímetros da carroça. "Tem carroceiro que é atropelado. Comigo, graças a Deus, isso nunca aconteceu. As pessoas não respeitam a gente, tem alguns motoristas que passam e gritam: ‘filho da puta’. A gente só está tirando nosso pão", queixa-se. O olho direito, contudo, é só mais uma parte do corpo do carroceiro sobrecarregada. Cheia, a carroça chega a pesar cerca de 250 kg, pressionando a coluna e os joelhos. "A gente se abaixa o levanta o tempo todo. Já me acostumei, às vezes canso e às vezes não tanto, quando a carroça não enche. Mas até hoje ainda não adoeci", conta.

Carroça de Lula, cheia de materiais como papelão e plástico, chega a pesar 250 kg. (Paulo Uchôa/LeiaJáImagens)

Vulnerabilidade

Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o privilégio de ‘gosar’ descanço. Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a sorte. (...) Catei dois sacos de papel. Depois retornei, catei uns ferros, umas latas, e lenha. Vinha pensando. Quando chegar na favela vou encontrar novidades. Talvez a D. Rosa ou a indolente Maria dos Anjos brigaram com meus filhos. Encontrei a Vera Eunice dormindo e os meninos brincando na rua. Pensei: são duas horas. Creio que vou passar o dia sem novidade!

Carolina de Jesus, Quarto do Despejo

De maneira geral, esses catadores encontram nessa atividade a única alternativa possível para realizar a sobrevivência por meio do trabalho. Essa conclusão é do relatório de Situação Social das Catadoras e dos Catadores de Material Reciclável e Reutilizável do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Fonte: Ipea

Graças a riscos relacionados à exposição ao calor, à umidade, à chuva, ao risco de quedas, aos atropelamentos, aos cortes e à mordedura de animais, ao contato com ratos, moscas, o mau cheiro dos gases e a fumaça que exalam dos resíduos sólidos acumulados, além da sobrecarga de trabalho e do levantamento de peso, a atividade de catação de materiais recicláveis é classificada como insalubre em grau máximo, segundo a Norma Regulamentadora no 15, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), exigindo utilização de equipamento de proteção e disponibilidade de locais adequados para o trabalho.

Com as mãos e pés encardidos, Lula não faz uso de luvas ou botas para puxar a carroça. "Sempre tomo injeção, mas já me acostumei a não usar nada. De vez em quando, me corto com vidro quebrado". Na rua, faça chuva ou faça sol, o catador garante que nunca foi acometido por doença capaz de separá-lo da carroça. "Desde pequeno, nunca adoeci. Tem que trabalhar com fé em Deus nesse negócio de reciclagem", afirma.

Lula não utiliza luvas ou qualquer tipo de proteção durante a catação. (Paulo Uchôa/LeiaJá Imagens)

Solidão

Quem inventou a fome são os que comem.

Carolina de Jesus, Quarto do Despejo

Lula dorme. Em uma boate a poucos quilômetros de sua casa, alguns jovens aproveitam a madrugada para encontrar amigos, beber, comer e dançar. Ao fim da festa, será preciso que os funcionários da boate recolham latas e vidros de cerveja espalhados pelo chão e pelas mesas da casa, para que finalmente as embalagens sejam agrupadas em dezenas de sacos plásticos. "De manhã, o dono me entrega o lixo para eu levar para o depósito e vender. Ganho R$ 10,00", conta o carroceiro, que dedica algumas horas de seu dia a, por sucessivas vezes, carregar o material na discoteca e descarregá-lo no armazém. Por fim, o carroceiro bate à porta do estabelecimento para entregar um maço robusto de dinheiro.

Mapa percorrido por seu Lula

Apesar do esforço, Lula não reclama. O apurado com o serviço para a boate representará cerca de um quarto dos rendimentos de sua jornada de trabalho. Com as poucas palavras de quem passa doze horas por dia sozinho com o lixo, ele conta que é filho de uma dona de casa e de um tratorista, tendo começado a catar materiais recicláveis ainda aos 16 anos, para contribuir com a renda familiar. "Agora, sustento minha companheira e meu filho. Nos dias de lixo, passo o dia sozinho. Só chego em casa de quatro da tarde e durmo de seis e meia para acordar na hora", comenta.

A solidão de Lula não é exceção no setor da reciclagem. De acordo com pesquisa do Ipea de 2010, elaborada a partir de relatos de gestores públicos e das organizações de catadores, apenas 10% dos trabalhadores do setor estão ligados a cooperativas e associações. Aos 40 anos, ele comenta que tem pouca esperança de se aposentar.

"Penso em arrumar outra coisa, mas nessa idade já está muito difícil. O governo está uma ‘roubaria’. Melhor ‘estar puxando’ carroça do que roubar. Meu sonho é meu filho conseguir um trabalho com carteira assinada", afirma Lula.

Sem esperança de se aposentar, Lula, como a maioria dos catadores, não está ligado à nenhuma cooperativa. (Paulo Uchôa/LeiaJá Imagens)

Palha de Arroz

"Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça êle já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta". Carolina de Jesus, Quarto do Despejo

Maria José dos Santos já puxava carroça há 20 anos quando cansou de ter sua mão-de-obra explorada por "atravessadores", conforme os carroceiros conhecem aqueles que compram o lixo recolhido, geralmente por uma quantia aquém do real custo do material. "Fiquei revoltada com um galpão abandonado no Arruda e, com outras catadoras, comecei a fazer protestos para que a prefeitura transformasse aquele espaço em uma cooperativa", lembra.

Ex-carroceira, Maria José é idealizadora e presidente de sua cooperativa de mulheres. (Paulo Uchôa/LeiaJá Imagens)

Após três anos de mobilização, a reivindicação foi atendida e a cooperativa Palha de Arroz foi fundada. "Foram feitas algumas formações e contamos com um total de quinze mulheres. No começo, tentamos incluir dois homens, mas eles não conseguiram se adaptar, porque não aceitavam dividir as tarefas de limpeza do galpão. Aí eu disse: ‘não, filho, sinto muito, do jeito que a gente pode fazer, você também pode, vá simbora", brinca Maria, atual presidente da instituição.

De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria da Mulher, a Prefeitura atua na Palha de Arroz através de um Grupo de Trabalho (GT), composto por diversas secretarias, e a experiência da cooperativa deve servir como modelo para outras semelhantes. A gestão tem ainda a intenção de ampliar o atual grupo. "A cada novo ciclo de capacitação técnica, há um aumento do número de mulheres. O processo é a longo prazo porque as mulheres precisam passar por capacitações técnicas (nem todas conhecem do processo de reciclagem) e de fortalecimento sociopolítico. Antes de convocar mais funcionárias, a Secretaria da Mulher está empenhada em fortalecer o grupo já existente", informa a nota oficial.

No galpão, materiais passam por triagem e são triturados. (Paulo Uchôa/LeiaJá Imagens)

No galpão, as carroças foram substituídas pelos carros da coleta seletiva, que entregam o material reciclável para que seja concluída sua separação e, posteriormente, feita sua trituração. As cooperadas trabalham protegidas do sol e com o devido fardamento, que inclui luvas e botas. A figura do atravessador foi, finalmente, eliminada do processo de venda da reciclagem. "A gente vende direito para as fábricas. O trabalho aqui dentro é muito árduo, todo executado por mulheres. Sem o atravessador, a renda da cooperativa é bem maior", comenta Ariane Durack, atual diretora administrativa da Palha de Arroz, que foi descoberta em uma das formações realizadas pela Prefeitura do Recife para seleção da equipe.

Ariane foi capacitada pela prefeitura para se tornar uma das diretoras da Palha de Arroz (Paulo Uchôa/LeiaJá Imagens)

O machismo, contudo, não deixou de fazer parte do cotidiano das mulheres da Palha de Arroz. Maria José relata que são constantes as tentativas dos representantes de algumas fábricas. "Às vezes querem pagar menos do que os produtos valem, mas sou esperta, sempre saio para pesquisar os preços. Homem é besta, qualquer coisa ele cai. A Secretaria da Mulher nos ensinou muito, sempre conseguimos negociar um preço justo", comemora.

 

Trabalho, desigualdade e marcas da história brasileira

Para a compreensão do elo entre pobreza, trabalho precário e até informalidade, é necessário desbravarmos resquícios da escravidão no Brasil. Além disso, nem a modernização econômica foi capaz de igualar as classes

Fábio, Ana, Rosicleide, Maria, Carlos e Seu Lula. Esses e tantos outros trabalhadores brasileiros refletem o quão desigual ainda é o Brasil. Seja em um lixão, pesca insalubre, nas jornadas extenuantes dos carroceiros ou de tantos outros trabalhos precários ou informais, a disparidade de classes torna-se ainda mais evidente: homens, mulheres e muitas vezes crianças que se submetem a serviços exaustivos para sobreviverem. Não raro, são quase invisíveis diante dos olhos do restante da sociedade. Das raízes históricas do país ao cenário atual de crise política, social e econômica, as camadas mais vulneráveis continuam sendo as principais vítimas da pobreza e da distribuição de renda deficitária; carregam as dores físicas, pelo esforço dos trabalhos braçais, e as dores sentimentais de quem foi castigado pela desigualdade. Ironicamente, o problema é claro aos olhos dos governantes, mas os números da discrepância social insistem em ser alarmantes.

De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgado em 2017 com dados de 2016, em torno de 50 milhões de brasileiros vivem na linha de pobreza e possuem renda familiar equivalente a R$ 387,07. O resultado corresponde a 25,4% da população nacional e compactua com o valor adotado pelo Banco Mundial para definir se um indivíduo é pobre: 5,5 dólares por dia. E assim como nos capítulos das histórias dos personagens deste especial jornalístico, a ausência de escolaridade é uma das causas que mantiveram os trabalhadores em situação de pobreza. Além disso, a grande maioria deles foi vítima de trabalho infantil.

Segundo a pesquisa do IBGE, quanto menor a escolaridade, mais cedo o jovem começa a trabalhar. Quase 40% dos trabalhadores entraram no mercado de trabalho com até 14 anos de idade. "A idade em que o trabalhador começou a trabalhar é um fator que está fortemente relacionado às características de sua inserção no mercado de trabalho, pois influencia tanto na sua trajetória educacional – já que a entrada precoce no mercado pode inibir a sua formação escolar – quanto na obtenção de rendimentos mais elevados", diz texto dos analistas do estudo publicado pela Agência Brasil. Ainda de acordo com a análise, esse percentual cresce quando o recorte é do grupo de trabalhadores com o ensino fundamental incompleto, passando para 62,1% do total.

Com a pobreza, falta de renda fixa e principalmente crise econômica, o desemprego atinge grande massa da população. Balanço do IBGE divulgado no final de 2017 aponta que o país tem cerca de 13 milhões de trabalhadores desempregados; desse total, mais de 60% eram pretos ou pardos. Ainda na questão da desigualdade racial, as taxas de desocupação da população preta ou parda se mostraram maiores quando comparadas com as taxas dos brancos em todos os níveis de escolaridade. Como exemplo, no grupo de quem tem ensino fundamental finalizado ou o nível médio incompleto, o percentual de desocupação dos trabalhadores pretos ou pardos foi de 18,1%, enquanto que a taxa dos brancos era de 12,1%.

Por trás dos números, consequências históricas

Índices sociais exemplificam o sofrimento da população pobre brasileira. A pobreza, contudo, está fortemente associada à questão da desigualdade social e à disparidade na distribuição de renda. Aspectos que por si só também explicam por que uns trabalhadores vivenciam condições insalubres no ambiente de trabalho e atividades que exigem força corporal em prol da sobrevivência, enquanto outros profissionais desfrutam de ocupações bem mais confortáveis, uma vez que tiveram base familiar, financeira e escolar. Todos esses fatores reforçam o conceito de que quanto mais elevado for o nível de escolaridade de um trabalhador, maiores serão as chances de aumentar suas remunerações salariais e melhorar sua condição de vida. Do contrário, quanto mais pobre e menos escolarizado for, o trabalhador tende a continuar um ciclo de pobreza que pode ser perpetuado para seus filhos. E por trás das cruéis estatísticas sobre desigualdade, existe um arcabouço histórico que explana as duras rotinas enfrentadas até hoje por trabalhadores que buscam sustento para suas famílias.

Para o professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Observatório do Mercado do Trabalho do Estado, Sidartha Soria, desigualdade social e os reflexos da pobreza nos trabalhadores brasileiros estão atrelados ao contexto histórico do Brasil. De acordo com o docente, o período da escravidão tem forte influência em muitas mazelas sociais que até hoje se perpetuam em nosso país. "Desigualdade no trabalho tem relação total com o contexto histórico e com nossa herança escravista. Os anos de escravidão tiveram um efeito terrível no nosso país, tanto para quem vive do trabalho quanto para o lado dos empresários e empregadores. Você tem um contexto viciado pela escravidão, que incutiu na sociedade brasileira uma cultura de desvalorização do trabalho", argumenta Soria.

(Chico Peixoto/LeiaJáImagens)

Ainda sobre a questão da desvalorização do trabalho no Brasil, o professor da UFPE explica que as atividades manuais são os exemplos da falta de valorização. "O trabalho no Brasil é cronicamente desvalorizado e quanto mais a gente vai indo em direção às modalidades técnicas do trabalho de ofício e funções manuais, como eletricista, trabalhador de lixão, catador, serviços gerais, pedreiro e pintor, percebemos que essas atividades são desvalorizadas, porque, durante séculos, foram trabalhos desenvolvidos por escravos. Então, se imaginarmos que durante anos todas as atividades manuais e técnicas foram desenvolvidas pelos escravos e índios, notamos que isso imprimiu uma marca no nosso imaginário cultural, no modo como as pessoas concebem trabalho no Brasil. Ainda que não exista mais escravidão, no Brasil virou uma espécie de sinônimo de atividade desempenhada por um ser humano subalterno", detalha o especialista.

"E mesmo com a abolição da escravatura, a gente continuou tendo a marca desse modo de conceber a relação com o trabalho, como se trabalho fosse coisa de ser humano inferior. Ainda persiste na nossa sociedade uma mentalidade meio aristocrática e de hierarquias fortes. Nunca passamos seriamente por um processo histórico como aconteceu na Europa que viveu um período de servidão, mas lá existiu um movimento de emancipação política de todas as pessoas, que foi o ponto de partida para você ter lá uma sociedade salarial em que o trabalho é valorizado. Como no Brasil o trabalho foi desvalorizado, foi gerada uma marca na formação educacional: se o trabalho é atributo de um ser humano subalterno, a educação deveria ser correspondente, com um ensino sem nenhuma qualidade que apenas serviria para disciplinar aquele ser subalterno, um cidadão de segunda classe, para o desempenho de uma função desvalorizada economicamente", complementa o professor.

Na visão do docente, a partir da desvalorização do trabalho em consequência dos resquícios da escravidão e da má formação educacional, muitos trabalhadores acabam vítimas da pobreza e quase que "condenados" a viver nas periferias e nas favelas. "É um estigma da diferenciação social! Desigualdade e trabalho são fenômenos que se influenciam mutuamente. A desigualdade leva a uma concepção do trabalho que reforça a desigualdade: trabalho para elites, trabalho para a classe média e trabalho para o restante do povo", diz Sidartha Soria. Nem mesmo o processo de modernização da economia brasileira foi capaz de diminuir a discrepância social: a camada de descendência ou cultura escravista continuou à margem da igualdade.

"Com a modernização econômica, por meio da industrialização e da urbanização, especialmente a partir de 1930, houve um divisor de águas entre o Brasil agrário, oligárquico aristocrata, escravista e moderno. Surgiu a classe média mais consistente, que deteve o capital intelectual e por isso essa classe média valoriza muito o ensino, escola e a universidade. Uma vez que ela não é elite e não é grande proprietária, tudo que ela tem é a educação. A partir dos anos 60, o Brasil diversifica sua economia, que agora é moderna e industrializada", relembra o professor.

De acordo com o educador, se a elite continuou detendo as terras, as fábricas, as propriedades e todo o capital físico e econômico, a classe média ficou apenas com o capital intelectual, desempenhando cargos que exigem "o saber", como nas atividades de gerência e administração dos negócios da elite. Por outro lado, o desenvolvimento se restringiu apenas aos elitizados e à classe média. "Nesse caso, você tem o processo de modernização do Brasil que conserva ainda a anatomia de desigualdade, sem eliminar os traços pré-capitalistas, no caso a desigualdade que vem da época da escravidão", esclarece Soria.

O professor da UFPE ainda destaca que a perpetuação da pobreza obriga muitos trabalhadores a continuarem em atividades insalubres pela necessidade de sobrevivência. "Tem muita gente que vive do lixo, por exemplo! No geral, os trabalhadores manuais ou marginalizados e pouco escolarizados têm que se entregar às atividades para sobreviverem. Quando jovens, não tinham quem pagasse suas contas e por isso tiveram que trabalhar bem cedo. Não conseguiram fazer escola por muito tempo e muito menos chegar à universidade. É muito difícil estudar. E assim repetem o ciclo que seus avós e pais viveram na grande maioria das vezes, mas claro que existem as exceções. Tudo isso decorre da nossa desigualdade reforçada pelo período da escravidão", opina o professor.

A mestre em história Aline De Biase também acredita que o período escravista brasileiro tem forte influência nas condições de trabalho e pobreza de muitos brasileiros. Ela cita atividades braçais como exemplo de trabalhos desvalorizados. "Nesse sentido, eu acredito que às nossas elites interessa se acomodar na mentalidade escravista, que persiste, e que a classe média acompanha esse comportamento. Um exemplo muito claro disso é o desprezo pelo trabalho braçal no Brasil. Trabalhos na lavoura ou trabalhos domésticos, por exemplo, são ainda muito desvalorizados no país. Um sintoma disso foram as críticas em relação à regulamentação do trabalho das empregadas domésticas que só veio acontecer em 2015! Por que esse trabalho demorou tanto para ser regulamentado? E por que a classe média brasileira, diferentemente da classe média de outras nações, não pode limpar a própria casa mesmo quando tem tempo para fazê-lo? Não estou aqui discutindo em relação a escolhas pessoais. Estou apenas problematizando como algo que parece tão normal no nosso cotidiano tem sua raiz estruturada nas relações escravistas", argumenta a pesquisadora.

"O peso está na relação do que foi estabelecido como trabalho de maior ou menor prestígio ao longo da nossa história. O trabalho braçal tem um estigma muito grande no Brasil porque ele está vinculado aos trabalhos que antes eram exercidos pelos escravos. Enquanto às elites brasileiras estavam reservados os trabalhos mais intelectuais", acrescenta a mestra, que também é professora do Instituto Federal do Sertão de Pernambuco.

Pobreza resulta em trabalho precoce

Quase todos os trabalhadores pobres inseridos em ambientes insalubres e que exigem esforço corporal extremo foram vítimas do trabalho infantil. As histórias se repetem e, se não houver intervenção do poder público, serão perpetuadas entre as novas gerações de brasileiros à margem da igualdade: quando existe pobreza, o trabalho é precoce, no lugar de livros e brincadeiras, há serviço em prol do sustento familiar. Entre os trabalhadores entrevistados neste especial jornalístico, a esmagadora maioria começou a trabalhar ainda criança, sob a justificativa de que seus pais também foram vítimas do trabalho precoce e, sendo assim, precisaram trocar a escola pelo serviço.

A procuradora Jailda Pinto, do Ministério Público do Trabalho em Pernambuco (MPT-PE), alerta que o trabalho infantil é um dos fomentadores da pobreza. Gerente do Projeto Estratégico Resgate a Infância, realizado pelo próprio MPT, Jailda reforça que o trabalho precoce é uma grave violação dos direitos humanos e sua perpetuação pode fazer da criança um futuro trabalhador pobre e sem escolaridade. Nesse contexto, é possível entender por que existem ciclos familiares rodeados de pobreza. "O trabalho infantil está intimamente relacionado com o baixo rendimento escolar e com a evasão escolar. As crianças e os adolescentes que passam horas trabalhando vão chegar à escola mais cansados, não vão conseguir aprender os conteúdos, não terão bons desempenho nas notas, desanimarão e muitos sairão da escola. E aqueles que continuam, terminam os estudos de uma forma menos excelente, digamos assim. Eles, muitas vezes, serão considerados analfabetos funcionais: conseguiram as notas, mas não refletem sobre a realidade, não sabem interpretar um texto", explica a procuradora do Trabalho.

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De acordo com Jailda Pinto, o trabalho infantil também possui ligação com os casos de trabalho escravo contemporâneo e serviços terceirizados. "As pessoas encontradas em situação de trabalho escravo começaram a trabalhar antes da idade permitida. Além disso, o trabalho infantil está relacionado aos trabalhadores terceirizados, porque eles conseguem essas vagas; atividades mais simples de serem feitas e que exigem menos qualificação. Essas pessoas saem de um baixo rendimento escolar e vão concorrer no mercado de trabalho com candidatos que tiveram a oportunidade de estudar", detalha a procuradora. "Diferentemente das famílias pobres, nas famílias ricas há um fenômeno em que os pais querem que os filhos só entrem no mercado de trabalho depois que eles façam graduação, pós-graduação, intercâmbio, cursos de idiomas, mestrado, doutorado... Então são essas pessoas, mais bem qualificadas, que os adultos que foram vítimas do trabalho infantil enfrentarão no mercado de trabalho", acrescenta Jailda Pinto.

No áudio a seguir, a procuradora do Trabalho dá mais detalhes sobre a perpetuação do ciclo de pobreza e como é a consequência nos trabalhadores. Jailda também explica como o poder público deve agir para combater o problema:

Recente levantamento Mapa do Trabalho Infantil apontou que 2,7 milhões de crianças e adolescentes, dos cinco aos 17 anos, são afetados pelo problema no Brasil. Segundo o estudo, a cada três crianças vítimas do trabalho precoce, duas são do sexo masculino; quando o recorte diz respeito às atividades domésticas, as meninas são maioria: 94%. Para a procuradora Jailda Pinto, combater esse cenário de trabalho infantil é uma das ações primordiais no que diz respeito às iniciativas do poder público que buscam diminuir os efeitos da desigualdade social.

Educação e assistência social como instrumentos de mudanças

Em um país desigual socialmente falando e vítima de uma crise econômica e política, é mais do que urgente pensar em alternativas que possam contribuir em prol da população pobre. Entre os especialistas, investir em educação e fortalecer as políticas de assistencialismo são ações que levam esperança à sociedade brasileira, principalmente aos trabalhadores que tanto lutam por uma condição de vida melhor. De acordo com o professor de sociologia Sidartha Soria, o Bolsa Família é um bom exemplo de assistencialismo. Soria, contudo, bate mais forte na tecla da educação como recurso primordial para diminuir os principais problemas oriundos da desigualdade social.

"O Bolsa Família é um avanço. O filho do pobre não consegue estudar porque tem que trabalhar cedo, então o programa obriga a criança a estar na escola e tirar boas notas. O problema dele é não ser maior, tem que ampliar para beneficiar mais pessoas. E não vejo que é algo para fomentar um assistencialismo. O indivíduo tem que melhorar de situação e a geração seguinte vai melhorar. Não estou dando uma geladeira para a família pobre, estou dando educação para o filho dela", defende o professor de sociologia.

(Paulo Uchôa/LeiaJáImagens)

"É preciso mudar a concepção que os governantes têm de educação. Não é custo, é investimento. Tem que investir mais! Os efeitos dela vão ser mais demorados, mas serão bem mais consistentes. Você vai ter uma geração com a cabeça melhor, conseguindo pensar melhor. Também precisamos de frente de empregos, o Estado tem que atuar gerando empregos, oportunidades de trabalhos formais. A família pobre é mais vulnerável, então ela precisa do poder público mais atuante", acrescenta o docente.

Aline De Biase reforça a educação como instrumento importante e essencial para mudar a realidade de muitos trabalhadores brasileiros e suas famílias. "Para mim, as políticas contrárias à educação só mostram a importância da educação como elemento transformador. O caminho para a mudança social e para diminuição das desigualdades é uma educação de qualidade. Uma educação que não só forneça os conteúdos programáticos das disciplinas e não esteja voltada apenas para o mercado de trabalho. As nossas escolas precisam formar bons cidadãos! Pessoas éticas e que aprendam a questionar o que está posto na nossa sociedade. Se as elites e os patrões querem continuar agindo a partir de uma mentalidade escravista, cabe ao restante da população parar de reproduzir essa mentalidade e mudar esse processo. Mas a gente só combate um problema quando a gente sabe que ele existe, quando a gente identifica esse problema. É por isso que esse modelo de educação que problematiza se faz tão urgente e tão importante na nossa sociedade", opina a mestre em história.

Para o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rafael Guerreiro, é claro como o baixo nível de escolaridade influencia a condição de pobreza e renda ineficiente dos trabalhadores. "Baixa escolaridade é um problema muito grave e muito difícil de resolver. Influencia bastante a vida dessas pessoas, no sentido da capacidade de elas gerarem renda. A questão da educação não é só para arranjar um bom emprego, mas a baixa escolaridade também limita a capacidade de as pessoas empreenderem", diz o pesquisador. Por outro lado, Guerreiro acredita que o efeito da educação não é emergencial para combater o estado atual de pobreza de muitos brasileiros. Ele complementa que as crianças podem ter condições melhores no futuro caso passem por um ensino regular.

"Educação não pode ser vista como ação emergencial. Demora muito para vermos o resultado. Educação é algo estratégico e estrutural que não pode deixar de fazer nunca e nesse cenário não podemos descuidar da educação das gerações futuras", comenta o pesquisador. "A gente precisa encontrar de novo o caminho do crescimento econômico e da estabilidade política", acrescenta Guerreiro, ao apontar como o Brasil pode diminuir os índices de pobreza. Ouça, no áudio a seguir, um comentário do pesquisador do Ipea sobre a educação como estratégia não imediata, mas essencial para as próximas gerações de trabalhadores brasileiros.

Se por um lado trabalhadores pobres e informais amargam dores oriundas da desigualdade social, em outro cenário, muitos profissionais formais sentem o peso de irregularidades trabalhistas. No Brasil, vários capítulos da relação entre patrão e trabalhador foram marcados por fraudes. E em um contexto ainda mais cruel, a herança escravista, além de explicar parte das causas e consequências da pobreza no país, também possui influência no trabalho escravo contemporâneo: trabalhadores brasileiros ainda sofrem a dor da exploração.

 

Escravidão contemporânea e fraudes trabalhistas alimentam a dor da exploração

Milhares de brasileiros foram vítimas de atividades análogas à escravidão e a relação entre patrão e trabalhador em atividades formais, muitas vezes, é marcada por irregularidades. Além desse contexto, a polêmica reforma trabalhista estabelece um debate caloroso (Foto: Sérgio Carvalho/MTE)

"O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.
E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!"


Poema "A canção do africano", escrito por Castro Alves, publicado em 17 de maio de 1863.

Anos depois, em 1888, a chamada Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, marcava o tardio fim da escravatura no único país das Américas onde o sistema opressor ainda vigorava. Desde então, já se passaram 130 anos e, na prática, o trabalho escravo ainda está presente, apesar de características diferentes, e é uma das principais violações dos direitos humanos no Brasil.

Navios negreiros, senzalas, negros acorrentados. Essa é a associação mais comum feita pelos brasileiros à escravidão. De acordo com uma pesquisa encomendada pela ONG Repórter Brasil à Ipsos Public Affairs, em 2016, 70% da população sabia da existência do trabalho escravo no país, mas poucos entendem a definição contemporânea do crime.

Apenas em 1995, a existência de trabalho escravo em território nacional foi assumida pelo governo federal perante o país e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). O Brasil foi uma das primeiras nações do mundo a reconhecer oficialmente a escravidão contemporânea.

Junho de 2010: trabalhadores escravizados em fazenda de cana-de-açúcar em Mato Grosso do Sul recebem suas refeições. Foto: Joao Roberto Ripper / Imagens Humanas

Isso se deu por causa do caso emblemático do ex-escravo Zé Pereira. Ele chegou à Fazenda Espírito Santo, em Sapucaia, no Pará, onde trabalhou em condições semelhantes às de escravidão. Em setembro de 1989, com 17 anos, fugiu dos maus-tratos sofridos por lá e caiu em uma emboscada preparada pelo "capataz" e outros três funcionários da fazenda, que lhe deram um tiro na cabeça pelas costas.

Pereira fingiu-se de morto e foi jogado em uma fazenda vizinha junto com seu companheiro de fuga, o Paraná, morto na mesma emboscada pelos jagunços. Após escapar, ele viajou até Belém, capital do Estado, e denunciou as condições de trabalho na fazenda à Polícia Federal. Com poucas iniciativas por parte do poder público, o ex-escravo levou o caso a ONGs e pediu ajuda à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados ­Americanos (OEA).

Nessa época, o Brasil reconheceu pela primeira vez a responsabilidade pela existência de trabalho escravo no país. O governo federal também se comprometeu a julgar e punir os responsáveis e a adotar medidas para prevenir outros casos. Daquele ano até 2016, mais de 50 mil trabalhadores foram libertados de situações análogas à de escravidão em atividades econômicas nas zonas rural e urbana.

Dados oficiais do Programa Seguro-Desemprego de 2003 a 2014 apontam que, entre os trabalhadores libertados, 72,1% são analfabetos ou não concluíram o quinto ano do ensino fundamental. Ainda de acordo com a pesquisa, 95% das pessoas submetidas ao trabalho escravo rural são homens. Em geral, as atividades para as quais esse tipo de mão-de-obra é utilizado exigem força física, por isso os aliciadores buscam principalmente homens e jovens.

Muito além de violação trabalhista, o trabalho escravo contemporâneo não segue os moldes do período colonial e imperial do Brasil. Atualmente, os mecanismos são outros, mas a estrutura que acomete a dignidade e liberdade do trabalhador pouco mudou. Na legislação brasileira, quatro pontos são suficientes para a configuração de trabalho escravo:

O trabalho escravo é um crime, previsto no artigo 149 do Código Penal brasileiro: "Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. A pena é de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência".

A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que existam pelo menos 12,3 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado em todo o mundo, e no mínimo 1,3 milhão na América Latina.

Uma pesquisa realizada pela OIT no livro "Perfil dos Principais Atores Envolvidos no Trabalho Escravo Rural do Brasil" afirma que as diferenças e semelhanças destes trabalhadores se constroem de maneira relacional, no interior de um processo social complexo. "Primeiramente, destacam-se os fatores de ordem econômica. Por um lado, estão os trabalhadores rurais que são premidos pelas necessidades de sobrevivência. A maioria deles são homens nordestinos, negros (pretos ou pardos), com baixa escolaridade e sem qualificação profissional", diz trecho do texto.

De acordo com Aline De Biase, mestre em história, os reflexos da pós-abolição, sem uma política de inserção desses ex-escravos e seus descendentes na sociedade, são sentidos até a atualidade. "No nosso quadro de desigualdade social, é visível que a maioria das pessoas em condições de pobreza e menor nível de escolaridade nesse país são negras ou pardas. Enquanto a maioria dos ricos e com alto nível de escolaridade são brancos. Isso é visível na nossa sociedade, é só olhar ao redor. A relação entre negritude e pobreza é realidade, mas também está no inconsciente coletivo por causa das marcas da escravidão", explica.

No Brasil, há 459 inquéritos criminais não concluídos contra pessoas suspeitas de submeter outras à escravidão. O dado, que diz respeito a inquéritos abertos entre 2009 e 2016, foi levantado e divulgado pela Câmara Criminal do MPF no Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, em 2017. A investigação é uma atribuição exclusiva do Ministério Público Federal (MPF). Em entrevista ao LeiaJa.com, a procuradora do Ministério Público do Trabalho Débora Tito destacou desafios para combater o trabalho escravo contemporâneo, os problemas na condenação dos empregadores e como os brasileiros devem denunciar o crime.

Fraudes trabalhistas, realidade presente no sistema formal do Brasil

Nas atividades informais, em que estão inseridos pescadores de sururu, catadores de material reciclável nos lixões, carroceiros e outros trabalhadores pobres, a desigualdade faz suas vítimas E mesmo no trabalho formal, reconhecido pelos órgãos da administração pública do país, nem todos os direitos trabalhistas são garantidos. Na esfera trabalhista, quando empregadores violam a legislação podem cometer uma prática fraudulenta.

Remuneração abaixo do piso, estágio ou emprego com carga horária excessiva, restrição de gênero e até trabalhar de graça. As queixas são muitas e o problema pode se acentuar com a fragilidade dos candidatos desempregados.

Popularmente chamada de CLT, a Consolidação das Leis do Trabalho regulamenta as relações trabalhistas, tanto do trabalho urbano quanto do rural, de relações individuais ou coletivas. A legislação surgiu no Estado Novo, governo de Getúlio Vargas, em 1º de maio de 1943. O objetivo é proteger o trabalhador, regular as relações de trabalho e criar o direito processual do trabalho, além de coibir relações abusivas entre empregado e empregador. A lei é considerada um avanço e conquista importante para os trabalhadores brasileiros por garantir condições mínimas de trabalho.

Seja na indústria, no comércio ou em trabalhos domésticos. Todo trabalhador deve ter a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) assinada. A procuradora Vanessa Patriota, vice-coordenadora nacional da Coordenadoria de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT), definiu as principais fraudes cometidas no Brasil atualmente.

A fraude trabalhista mais comum é quando se busca mascarar uma determinada realidade através de outra situação. Por exemplo, quando um empregador contrata o funcionário com um vínculo de emprego diferente do que ele exercerá. "Situações comuns de fraudes no Brasil é quando o trabalhador não recebe as verbas rescisórias e tem que buscar os direitos na Justiça. Ou a fraude a um registro de ponto, quando se manipula o documento e as horas extras são excluídas. O mais comum no Brasil é o mascaramento da relação de emprego através de outras formas de contratações do trabalhador", explica a procuradora.

Em 2017, de acordo com dados do MPT, foram recebidas 6.842 denúncias de fraude trabalhista em todo o Brasil. Dessas, 2.567 inquéritos civis foram abertos. Em Pernambuco, foram 242 denúncias e 102 inquéritos.

"Nós temos no MPT oito coordenadorias nacionais, em diversas áreas de atuação. Uma delas é de combate às fraudes trabalhistas. É estabelecido um planejamento anual de acordo com as fraudes mais comuns na região. Essa logística é uma forma de unificar a atuação e levantar formas de investigação, projetos que estão dando certo e coordenar essa atividade, dando sugestões e orientação de como apurar aquela fraude. O MPT instaura o inquérito civil e investiga os casos", detalha a procuradora Vanessa.

A Justiça do Trabalho recebeu 3,9 milhões de novos processos em 2016 e atualmente há 2,5 milhões de processos em tramitação no Brasil, segundo estatísticas do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Durante as discussões sobre a reforma trabalhista no Congresso, dados sobre a questão trabalhista no Brasil foram repetidos muitas vezes. No discurso, políticos diziam que o Brasil era o país com o maior número de processos nesse âmbito no mundo.

E para isso, a reforma trabalhista tinha o objetivo de diminuir o número de denúncias, já que ela muda regras para que o trabalhador entre com uma ação do tipo na Justiça. Na época, centrais sindicais, associações de trabalhadores, entidades de juízes e procuradores, e o Ministério Público do Trabalho criticam as mudanças, afirmando que elas retiram direitos dos trabalhadores. Para a procuradora Vanessa, o argumento da reforma é uma falácia e prejudica bastante o trabalhador brasileiro.

 

Tão importante quanto a denúncia é a investigação

Por mais que os órgãos públicos reforcem a necessidade de os trabalhadores denunciarem irregularidades trabalhistas, existe uma defasagem no número de auditores que prejudica ações investigativas

Pagar trabalhador fixo por meio de nota, hora extra por fora ou tratar empregado como cooperado são três das possibilidades mais comuns que uma empresa encontra para fraudar sua relação de trabalho com seus funcionários. Embora seja fácil fazer uma denúncia, o número de registros vem caindo em todo o país. A contradição é explicada pelo baixíssimo número de auditores fiscais, responsáveis por fichar e investigar as queixas, com que o país conta.

O auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) Edson Cantarelli define fraude como tudo aquilo que é feito por uma empresa para mascarar uma situação real. "Recentemente tomamos conhecimento do caso das cooperativas ilícitas, a partir das quais as corporações tratavam empregados como cooperados de forma irregular, para não arcar com seus direitos trabalhistas", comenta. De acordo com Edson, qualquer pessoa pode denunciar uma fraude, vítima ou não. "Uma das principais formas de fazer isso é buscar o setor de protocolo do MTE na superintendência ou qualquer uma das gerências, pedir o formulário e fazer a denúncia por escrito. Depois disso, o documento segue para a fiscalização e é avaliado", completa.

O MTE costumava oferecer ainda um plantão de atendimento direcionado a orientar os denunciantes. "Em minha opinião, é a melhor forma de coletar as denúncias, porque essa não é uma via unilateral e permite que orientemos o trabalhador. Devido à nossa redução de quadro, no entanto, tivemos que suspender alguns serviços. Para não parar a fiscalização, tivemos que acabar com o plantão", explica.

Fiscalização comprometida

A fiscalização das denúncias, contudo, não deixou de ser afetada pela vertiginosa redução no quadro de auditores fiscais do país. Só no ano passado, o Brasil registrou um total de 66 mil denúncias trabalhistas, sendo 5.581 delas provenientes de Pernambuco. Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), para dar conta desta demanda, no entanto, o país conta com apenas 2.350 auditores fiscais em atividade, enquanto o Estado dispõe de 92 profissionais lotados, dos quais somente 69 auditores estão na rua, viabilizando as investigações.

Dados referentes ao número de auditores fiscais do trabalho (AFTS) para cada mil empresas por UF
UF Média 06/07 PR 06/07 Média 08/09 PR 08/09 Variação
RO AC AM RR PA AP TO - MA PI CE RN PB PE AL SE BA - MG ES RJ SP - PR SC RS - MS MT GO DF 1.38 2.83 2.93 4.88 3.27 4.09 1.45 - 2.68 5.64 2.63 2.35 2.11 1.12 2.43 2.95 1.26 - 0.91 1.69 1.43 0.85 - 0.73 0.79 1.00 - 1.10 1.78 0.98 2.78 c a a a a a c - a a a b b c a a c - c c c c - c c c - c c c a 1.79 1.82 1.80 1.82 1.79 1.74 1.72 - 1.77 1.74 1.65 1.61 1.58 1.56 1.52 1.47 1.35 - 1.36 1.40 1.36 1.37 - 1.50 1.63 1.80 - 2.02 2.34 2.42 3.93 b b b b b b b - b b b b b b c c c - c c c c - c b b - b a a a 0.41 -1.01 -1.13 -3.06 -1.48 -2.34 0.26 - -0.91 -3.90 -0.97 -0.74 -0.52 0.44 -0.90 -1.49 0.09 - 0.44 -0.29 -0.07 0.52 - 0.77 0.85 0.81 - 0.91 0.56 1.44 1.15
NOTA: PR DENOTA A POSIÇÃO RELATIVA, PODENDO SER ACIMA DA MÉDIA (A); EM TORNO DA MÉDIA (B); E ABAIXO DA MÉDIA (c)
FONTE: RAIS DO MTE

O abismo entre a quantidade de queixas e número de auditores disponíveis levou o Brasil a ser, entre os anos de 2014 e 2016, consecutivamente denunciado à Organização Internacional do Trabalho (OIT), instituição ligada à Organização das Nações Unidas (ONU). "O país é signatário da convenção de número 81 da OIT, que diz que uma nação deve prover o número de auditores capazes de atender às demandas de seu mundo do trabalho. O descumprimento nos levou a articular essas queixas junto à organização", coloca Carlos Silva, presidente do Sinait.

De acordo com Carlos, o Brasil teria, segundo a lei, que dispor de um mínimo de 3.644 auditores. "Mas é preciso esclarecer que o quadro previsto é mencionado com base nas exigências da OIT feitas há 30 anos. Há 30 anos, o mundo do trabalho tinha uma dinâmica completamente diferente. Por isso, a Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizaram um estudo que aponta a real defasagem de auditores no país", comenta. Trata-se da nota técnica número 4 de julho de 2012, que considerando, dentre outros fatores, o crescimento demográfico do país e de seu mercado, conclui que o real número de auditores fiscais necessário para atender às demandas dos trabalhadores é de quase 8 mil.

Carlos Silva é um dos articuladores da denúncia do Brasil à OIT (Sinait/Divulgação)

Carlos Silva interpreta a não realização de concursos para a seleção de novos auditores fiscais do trabalho, embora a categoria tenha média nacional de 150 aposentadorias por ano, como uma forma de retaliação do Governo Federal às constantes denúncias e protestos dos funcionários públicos a respeito da sobrecarga de trabalho. "Não há justificativa razoável para a não realização de concursos para auditores enquanto para as demais vagas públicas as seleções são abertas anualmente. No orçamento de 2017, o governo cortou 70% da verba da fiscalização do trabalho, isso fez com que, nos meses de junho e agosto, a fiscalização do trabalho infantil parasse", coloca.

A elaboração do orçamento depende do ministro do Trabalho e Emprego. "Estamos reféns do objetivo de frear a investigação das denúncias trabalhistas, dos maus empresários que, por acaso, atualmente ocupam o senado e estão usando os poderes a eles concedidos para tolher a atuação repressiva da fiscalização do trabalho. Os elementos estruturantes do trabalho no Brasil estão sob franco ataque", afirma.

Caos em Pernambuco

O Estado conta com cinco gerências do MTE. Cada uma das cidades em que elas estão localizadas precisam atender, além de suas próprias demandas, a chamados em cidades ao seu redor. Em algumas das gerências, não há auditores.

Entenda a ação de cada órgão público

Ministério do Trabalho e Emprego: Órgão do executivo que tem por função criar políticas e diretrizes para geração de renda do trabalhador e seu bem-estar. Também fiscaliza e pode investigar empresas, através de auditores fiscais.

Ministério Público do Trabalho: Outra instituição do poder executivo, o MPT é composto por procuradores de Justiça do Trabalho. A eles, cabe defender direitos coletivos e difusos dos trabalhadores, em caso de agressão, como a erradicação do trabalho escravo e do trabalho infantil. Também fiscaliza o cumprimento da legislação trabalhista quando houver interesse público, buscando regularizar e mediar as relações entre empregados e empregadores.

Justiça do Trabalho: Instituição do poder judiciário responsável pelas ações ligadas às relações de trabalho.

 

Para especialistas, futuro do trabalhador brasileiro é preocupante

Procurador Geral do Trabalho, presidente do Corecon-PE e líder da CUT discutem perspectivas a partir das possíveis alterações nas leis trabalhistas e da atual conjuntura do mercado

"Uma massa de pessoas mal remuneradas, com grande incerteza entre os jovens". É isso que a presidente do Conselho Regional de Economia de Pernambuco (Corecon-PE), Ana Cláudia Arruda, acredita que a classe trabalhadora do Brasil pode se tornar num futuro não muito distante. O quadro será uma consequência direta do movimento global de flexibilização dos postos de trabalho que encontra grande resistência de diversos movimentos civis em todo o mundo e, caso se concretize, trará consigo a perda de uma série de direitos trabalhistas.

Para Ana Cláudia, que já se posicionou contra todas as reformas do Governo Temer através da instância nacional do Conselho, o Cofecon, o Brasil realmente demanda uma reforma trabalhista, mas que seja construída a partir de um processo mais democrático. "É fundamental gerar novos empregos em um país que tem 13 milhões de pessoas desempregadas, mas empregos formais. Para que isso aconteça, é preciso criar uma política macroeconômica séria, o que passa por uma série de discussões que nem sequer entraram em pauta. A sociedade pede transparência e deseja participar do processo", opina.

De acordo com Ana Cláudia, a tendência é que os trabalhadores deixem seus postos formais de trabalho para se tornarem empreendedores. "Esses profissionais terão de encontrar seu próprio espaço no mercado com o qual vão se relacionar de outra forma, trabalhando para várias empresas, ao invés de apenas uma, tendo que vender seu serviço o tempo todo", explica. Assim, num futuro com ainda menos postos de trabalho devido à automação e à utilização de inteligência artificial, o nível de qualificação dos profissionais será decisiva. "As grandes empresas tendem a se estabelecer cada vez mais, mas é possível que os empreendedores prestem serviço para elas. Os trabalhadores qualificados tendem a ser mais independentes, o problema é que a enorme taxa de desempregados do Brasil também se deve a desqualificação de nossa mão de obra", completa.

Embora concorde com a afirmativa de que a terceirização é uma tendência mundial, o procurador geral do trabalho, Ronaldo Curado Fleury, defende que as reformas no Brasil só levaram em conta o que acontece no exterior quando as medidas são favoráveis para os empregadores. "Fazer contrato por hora, o que não era permitido, por exemplo. Nos Estados Unidos, o salário mínimo por hora é de U$ 14, mas aqui no Brasil dá pouco mais de R$ 4. Na verdade, essa reforma trabalhista é simplesmente a retirada de direitos do funcionário e permite a perda de 100% dos direitos", opina.

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Quanto à previdência, o procurador explica que o sistema atualmente tem caráter "contributivo e solidário", isto é, um fundo alimentado pelas contribuições de uma atual geração de trabalhadores com a finalidade de sustentar aqueles que já se aposentaram. "A questão é que a reforma trabalhista já destrói a previdência ao terceirizar os postos de trabalho. Assim, há uma enorme diminuição na quantidade de contribuintes, e consequentemente a gente deixa de ter dinheiro para pagar a aposentadoria de quem parou de trabalhar", explica.

De acordo com dados do Governo Federal, o saldo negativo da previdência no ano passado foi de R$ 268, 79 bilhões, sendo a maior dele proveniente do INSS. O planalto justifica que, embora a arrecadação do sistema tenha aumentado em 4,6%, a despesa com a previdência cresceu 9,7%. "O déficit recorde em 2017 é mais uma prova da necessidade de um sistema previdenciário sustentável. A aprovação da reforma vai garantir o equilíbrio das contas públicas e possibilitar mais investimentos, geração de emprego e renda", comentou o presidente Michel Temer em suas redes sociais.

Fleury, contudo, alerta que tais números são gerados pelo próprio governo. "A propaganda oficial não traz dado confiável. Oficialmente, temos o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) falando que não há nenhum rombo, pelo contrário: a previdência está superavitária. A presidência só coloca que se não reformar, ninguém vai se aposentar, sem nenhum argumento concreto, é só política do terrorismo", afirma. Assim, o procurador considera que os efeitos das reformas são "assustadores". "O trabalhador não saberá ao certo quando vai ganhar, nem quantas horas irá trabalhar. Isso fará com que ele fique muito inseguro para investir em um plano de saúde ou, por exemplo, numa prestação, o que afetará toda a indústria que depende de crediário: quem atua com veículos, imóveis e eletrodomésticos vai sentir demais os efeitos dessa reforma a médio prazo", acrescenta.

"Paramos a reforma", diz presidente da CUT-PE

O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em Pernambuco, Carlos Veras, concorda que o argumento do "rombo" nas contas da previdência utilizado pelo Planalto é equivocado. "Há várias fontes de arrecadação para a previdência além da contribuição direta do trabalhador, como são as empresas, das quais o Estado não cobra. De acordo com a CPI instaurada para investigar o assunto, o país deixou de arrecadar R$ 4,3 trilhões devido à sonegação e dívidas à previdência. O trabalhador está sendo penalizado por uma dívida que não foi construída por ele", comenta.

Para Veras, outro ponto da reforma da previdência que merece atenção é a nova idade mínima para a aposentadoria. "Tem regiões onde a estimativa de vida das pessoas chega aos 55 anos, em outras é menor do que isso. A expectativa de vida de uma travesti, por exemplo, é de 33 anos de idade. Qual a política previdenciária para essa população?", provoca. De acordo com o presidente, os movimentos sociais organizaram, além de uma série de protestos, pelo menos 150 audiências para debater as reformas do Governo Temer. "Nós, trabalhadores organizados, construímos agora uma grande vitória: a retirada da pauta da reforma da previdência. Foram protestos e mais de 150 audiências públicas, pressão que intimidou os deputados a se colocarem a favor do projeto", coloca. Assim, Veras convoca a população a se mobilizar contra as reformas. "Agora vem o pacote de maldade de Temer, as privatizações da Eletrobrás, Chesf, dos bancos públicos, o fim do programa de habitação, dentre outros. Caso o presidente consiga maioria, poderá votar seus projetos a qualquer momento, mas é ano de eleição e é preciso segurar as reformas pelo menos até o final dele. Se nós não mudarmos o rumo do país, as perspectivas para os trabalhadores são terríveis", conclui.

Os anseios dos trabalhadores

O que almeja o bravo trabalhador brasileiro? As respostas estão no vídeo a seguir: