Mesmo em movimentadas áreas urbanas, atividades trabalhistas marcam a infância das crianças brasileiras. Situações visíveis, mas que às vezes passam despercebidas pela população
O cotidiano de quatro amigos com idades entre 12 e 14 anos deveria ser de estudos e brincadeiras. Mas João, Marcos, Carlos e Dudu precisam trabalhar. Em casa, o dinheiro é curto e a faixa etária pouco importa nessas horas, quando a responsabilidade cai nas costas de qualquer um que pode exercer uma atividade que gere renda. De segunda a sábado, eles estão em um semáforo da Avenida Agamenon Magalhães, no Derby, importante corredor de mobilidade do Recife, limpando parabrisas de carros. “Aqui dá pra ganhar bem, passa mais carro”, explica João, apesar de tirar entre R$ 10 e R$ 20 por dia.
João diz que estuda à noite, cursando a quinta série, e garante que vai terminar os estudos. Mas é na música que está a cabeça do garoto. “Meu sonho é ser MC”, repete a todo instante, feito um mantra. Como se, repetindo, o sonho fosse se tornar realidade. “Eu gosto de Troia, Cego, Shevchenko e Elloco”, revela. Ídolos que saíram de bairros como o seu, de vidas também duras e que no imaginário popular, vistos como ‘consagração’ que pode chegar a qualquer um. Já para Marcos, Carlos e Dudu, se tornarem jogadores de futebol é o grande sonho.
A rotina é dura, a forte temperatura não é pra qualquer um, há também o perigo de correr entre os veículos e a situação de vulnerabilidade. Todos vivem no Alto Santa Terezinha, bairro periférico da Zona Norte do Recife, e descem até essa esquina do bairro do Derby atrás dos trocados dados pelos motoristas. “Eu moro com a minha vó. O dinheiro dou pra ela. Meus pais são separados e não vivo com nenhum deles porque não gosto da minha madrasta, nem do meu padrasto”, conta João.
O cenário não é novidade em nenhuma cidade da Região Metropolitana do Recife ou em qualquer outra metrópole brasileira há muito tempo. Aliás, essa cena já se integrou de tal maneira ao cotidiano que muitas vezes passa despercebida. Segundo o governo federal, quase 70% das vítimas estão em áreas urbanas.
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Perigo no presente e danos no futuro
De acordo com Ricardo Oliveira, coordenador do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (entidade da área de direitos humanos que trabalha com crianças e adolescentes), o perigo para esses jovens é real e imediato. “Ao estarem na rua, convivendo com todos os tipos de pessoas, eles correm o risco de serem aliciados ou até mesmo explorados por adultos”, explica.
Ainda na Avenida Agamenon Magalhães, Maicon (14) e Caio (17) carregam sacos de pipocas e caixas com garrafas de água mineral de um lado para o outro, assim que o semáforo fica vermelho. O faturamento fica em torno de R$ 40 por dia. “Só é ruim quando vai escurecendo, porque ninguém quer abrir o vidro com medo de assalto. Aí atrapalha”, lamenta Caio.
O dinheiro serve para ajudar em casa, como sempre. Os dois moram em Joana Bezerra, comunidade localizada na área central do Recife. Ambos estudam. Enquanto Maicon almeja ser engenheiro civil, Caio parece pessimista quanto à sua futura profissão. “Quando eu for adulto vou ser o que der pra ser, pegar o que vier. Agora, se eu pudesse escolher, seria empresário, como sou agora”, revela, aos risos.
Vários estudos já constataram que trabalhar na infância prejudica o rendimento escolar. “A criança deixa de fazer um dever de casa ou brincar para estar em um ambiente perigoso, em uma relação adulta que é o mundo do trabalho. Isso atrapalha o desenvolvimento”, diz Ricardo Oliveira. “Há também o risco de evasão escolar pela ilusão de que se está ganhando dinheiro e que é melhor estar ali do que estudar. O que a princípio parece uma coisa boa, na verdade limita o futuro desses jovens”, complementa o coordenador do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social.
Família
O bairro de Boa Viagem, Zona Sul da capital pernambucana, conta com sinais de trânsito ocupados por vendedores e pedintes. Um desses cruzamentos é frequentado quase que diariamente por Cacau, de 12 anos, morador do bairro do Coque. Munido de combustível, fósforos e um stick (instrumento de malabares), ele faz truques com fogo para depois solicitar dinheiro aos motoristas. Aprendeu malabarismo com o irmão, que hoje está preso por tráfico de drogas. Em busca de colorir sua realidade obscura por causa do trabalho infantil, o garoto revela um sonho, que é seguir carreira como jogador de futebol. “Me leva pra jogar no Sport. Lá só joga pagando. Queria ser goleiro”, pede, em entrevista ao LeiaJá.
Sua mãe não gosta que ele vá sozinho para o semáforo, mas isso não o impede. Nunca foi incomodado por ninguém, garante. “Quem é doido? Se vier me roubar, jogo gasolina e queimo”, conta, marrento. Cacau confessa que por várias vezes vai trabalhar acompanhado da sua mãe que, segundo ele, tem outras ocupações. Quais são, não soube informar.
É comum ver famílias inteiras nas calçadas. Próximo ao Shopping Center Recife, ainda no bairro de Boa Viagem, tem até colchão e varal para acomodar os adultos e menores. Carol tem um filho de cinco anos. Ex-detenta, ela conta que não consegue emprego formal e nem se cadastrar no programa federal Bolsa Família, por problemas com sua documentação. “Tenho que trazer ele, deixar sozinho em casa é perigoso. Mas ele vem e fica sentadinho aqui brincando, não deixo pedir dinheiro. Mas esse aqui, de 13 anos (aponta para uma das crianças), por que não pode ajudar? Minha mãe trabalhou em casa de família quando teve a mesma idade”, justifica.
“O trabalho infantil para ajudar em casa é uma ilegalidade, mas não é um crime, ao contrário da exploração”, esclarece Ricardo Oliveira. De acordo com ele, analisar a situação como um todo é a forma mais eficaz de entender e combater essa atividade. “A obrigação do sustento é primeiramente dos pais. Caso haja um estado grave de vulnerabilidade, o estado também tem um papel nessa situação. É preciso um assistencialismo, antes de qualquer outra coisa”, completa.
Outras mulheres no mesmo local (que não quiseram se identificar) contam que já foram denunciadas por manter crianças trabalhando e ameaçadas de perderem a guarda. “Não se pode prender um pai de família pobre, porque o filho está trabalhando. Tem que se discutir outras vias. Há os casos em que se dá todas as coberturas, faz-se várias intervenções e, se o problema persistir, existe a situação de se perder a guarda do menor. Porém, até acontecer isso é uma longa caminhada. O objetivo maior não é esse e sim tentar estabelecer o ambiente familiar”, afirma Ricardo.
Mesmo com a consciência de que o lugar é impróprio para crianças, os adultos não economizam alegações para manter os filhos no local. “De um jeito ou de outro a gente tem que criar. Nenhum deles vem só, sempre tem um responsável”, diz Carol. No momento da entrevista, um carro para e o motorista entrega uma sacola com donativos para serem divididos. “Estou aqui todo dia, até nove da noite. Se eu folgar, eu morro de fome”, revela.