Adultos que hoje imploram por dinheiro em semáforos, quando crianças foram vítimas do trabalho infantil
A Avenida Agamenon Magalhães é como uma linha do tempo do trabalho informal do Recife. São várias gerações, entre uma esquina e outra, em busca de dinheiro pouco, ganho com muito suor. O discurso de que uma ocupação desse tipo na infância é prejudicial ganha exemplos, enquanto cai por terra a perspectiva dos que dizem que trabalhar traz benefícios para a criança.
A estagnação é inevitável, um inimigo invisível que se aproveita da falta de discernimento. “É como se essa condição fosse biológica, vitalícia, hereditária”, relata Zélia Porto, professora de Educação Infantil da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “As pessoas das comunidades pobres se reconhecem como uma força de trabalho motriz e não veem o erro que estão cometendo”, conta.
Zélia, que leciona no curso de pedagogia da UFPE, convive em guerra com esse conjunto de fatores por muito tempo. “Estou nessa luta há 30 anos. Discuto muito isso na sala de aula. A criança tem que viver a infância, é um direito seu. Os danos emocionais e intelectuais são irreparáveis. O poder público e a sociedade precisam se mobilizar mais. As iniciativas são pequenas ainda, falta uma vontade política maior”, reclama.
“É muita humilhação”
Um dos vários cruzamentos da Agamenon abriga um grupo de oito amigos e vizinhos que moram no bairro de Joana Bezerra, periferia recifense. Alexandre Delgado (27 anos) trabalha desde os dez anos de idade, segundo ele, sempre limpando parabrisas de carros. “É muita humilhação. Tem gente que reclama quando a gente molha o vidro, quer bater. Eu queria sair daqui, tenho documentação, tenho disposição, mas não arrumo nada”, lamenta.
Bruno de Gomes, de 23 anos, tem uma história parecida a dos outros colegas. “Parei de estudar na sétima série e nunca mais voltei. Se eu tivesse continuado era melhor, mas não deu”, diz. De acordo com Zélia Porto, a história não deixará de se repetir. “Existe uma tendência da classe trabalhadora em naturalizar isso. A falta de esclarecimento banaliza o trabalho infantil”, afirma.
Segundo a coordenadora de aprendizagem da Escola Dom Bosco de Artes e Ofícios, Jaqueline de Oliveira, outro dano considerável, além da evasão escolar, é o comprometimento físico de quem encara essa rotina. “Quem trabalha quando criança não tem saúde, isso é um fato. Os danos são psicológicos e físicos”, aponta.
Parceiros de longa data
Joselito de Lima, conhecido como Branco, e Robson da Rocha, o Bob, cresceram em Joana Bezerra, trabalharam juntos a vida inteira nos sinais e ainda estão lá. “A gente está aqui desde a época em que cachorro era amarrado com salsicha”, brinca Bob. “Não tive tempo de estudar. Parei na terceira série. Casei cedo também, aí não fui pra frente”, comenta Branco.
O bom humor dos dois, porém, não esconde a dura realidade que enfrentaram no passado e que trouxe consequências ao presente. “Comecei ajudando meu pai, armando armadilha para pegar guaiamum. Eu tinha sete anos. Depois não parei mais. Hoje é pitomba, laranja, água, meu negócio é esse”, conta Branco.
Hoje, com 38 anos, ele tem na memória as mudanças que as três décadas trouxeram ao local e deseja uma vida diferente para os filhos. “Antigamente era um ou outro trabalhando aqui. Hoje pode olhar, tem bem uns 50. Criança tem um monte. Meu filhos não deixo trabalhar, só estudar. Minha mais velha quero colocar no Jovem Aprendiz, porque já terminou o colégio”, conta, orgulhoso.
Bob, de 28 anos, não tem filhos para aconselhar. A correria nunca lhe permitiu nem tempo de constituir família. “Sempre vivi mais ‘maloqueirando’. Estudei pouco, desde os cinco que já limpava vidro de carro. Ficava escondido e quando um passava eu jogava a esponja de surpresa. Depois chegava já esfregando e pedindo um trocado”, diverte-se lembrando.
Fuga antes que fosse tarde
A partir dos 11 anos, Ana Célia Gomes deu início a uma jornada de trabalho digna de qualquer adulto. Começou vendendo picolé na Integração da Caxangá, Zona Oeste do Recife. Aos 12 passou a comercializar verduras com o pai. Quando a mãe arrumou um emprego de doméstica, Ana a acompanhava em dois dias na semana no serviço. Nessa época, ela tinha 14 anos.
Uma vizinha lhe apresentou o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social que na época estava promovendo uma campanha contra o trabalho infantil. Ana se inscreveu na oficina sobre os direitos das crianças e dos adolescentes e tudo mudou. “Quem não tem conhecimento acha que não está sendo prejudicado”, conta.
Ana, hoje com 30 anos, formou-se em pedagogia, com especialização em psicopedagogia, e é professora da Rede Municipal do Recife. A infância difícil ficou para trás, mas ela lembra que aqueles anos podiam ter influenciado a sua carreira. “Eu nunca parei de estudar, mas o trabalho me atrapalhava, pois no momento em que eu deveria brincar ou revisar minha matéria, estava na rua. Deixar de trabalhar foi essencial para a minha formação. Eu tive consciência de que poderia ser protagonista”, diz.
Foram sete anos no Centro Dom Helder Câmara. A experiência fez com que ela também se engajasse contra o trabalho infantil. “Passei a ser uma multiplicadora de informação, alertando outras crianças em escolas e comunidades. Acredito que consegui convencer muita gente e abrir novos horizontes também para os pais. Muitos deles acham que tem que trabalhar mesmo, porque eles próprios trabalharam quando crianças, mas, por outro lado, passam a entender que também lhes faltaram oportunidades e acabam entendendo o prejuízo. Hoje faço isso com meus alunos”, revela.