Compartilhe: Facebook Twitter
Expediente Leia Já © 2017 - Todos os direitos reservados
Reportagem 3

Uma viagem pelos direitos violados

Começar a ler
Topo

Transportes públicos também se tornaram palcos onde o trabalho infantil faz vítimas. Em meio aos trajetos, menores buscam dinheiro

Na correria diária das estações de metrô da Região Metropolitana do Recife (RMR), uma cena se tornou comum para os usuários do transporte: crianças, que deveriam estar na escola, trabalhando como ambulantes, tanto nos arredores, quanto dentro dos vagões. As justificativas para essa situação variam muito. Vai de “ter que ajudar a renda da família”, “não tem onde ficar enquanto os pais trabalham” ou até mesmo por vontade própria, para “ganhar o seu e poder comprar suas coisas”.

Enquanto muitas crianças estão no conforto de suas casas, brincando em parques, fazendo passeios em família ou nas escolas, colorindo suas vidas com o aconchego familiar, outras estão perdendo o colorido da infância. Sujeitas a acidentes, expostos a assédios, violência e o pior: comprometendo o seu desenvolvimento. “Todo dia nós vemos crianças e adolescentes fazendo comércio nas estações. Uma coisa que já é proibida para adultos infelizmente se tornou comum para todos”, afirmou a recepcionista Mary Anne, uma dos usuários do metrô que presencia, diariamente, casos de trabalho infantil. “Só na Linha Centro, com destino a Camaragibe que é a que pego frequentemente, são 14 estações. Se tiver cinco delas com vigilantes é muito. Além disso, os ambulantes são ‘unidos’ e avisam sempre onde eles estão”, complementa.

Martina Arraes/LeiaJáImagens

Num passeio entre as estações de maior fluxo como a Joana Bezerra, próxima ao Centro do Recife, e Afogados, na Zona Oeste da capital pernambucana, é possível perceber adultos trabalhando acompanhados de crianças como vendedores. “Eu tenho que trazer minha filha (nove anos) e minha sobrinha (sete anos) porque não tenho com quem deixar no período da manhã, mas à tarde saio daqui e as levo para a escola. Sei que não é o melhor e nem o certo para elas, mas é o que posso fazer”, justifica a vendedora de salgados que fica na saída da Estação Joana Bezerra, Cida Melo.

Dentro dos vagões dos metrôs, o cenário se assemelha a uma feira em meio a um transporte público. “Dentro do metrô quase não há fiscalização, às vezes vejo mais gente vendendo coisas do que passageiros. Eu uso metrô todo dia e presencio crianças e adolescentes trabalhando assim como os adultos. Eles têm até um ‘esquema’ de vendas: no vagão que já tem gente vendendo pipoca, por exemplo, não pode ficar mais de dois vendedores do mesmo produto”, conto a estudante Isabela Cordeiro.

Franzino e com ar de cansaço, um menino de apenas oito anos de idade carrega um isopor nas costas. É o seu material de trabalho. Sozinho, ele passa pelas estações da linha centro vendendo sorvete. Quando abordado, alega que trabalha para ajudar em casa. “Na minha família todo mundo trabalha para ajudar a ter as coisas em casa. Queria poder estudar, brincar e fazer o que toda criança faz, mas não posso”, afirma.

Martina Arraes/LeiaJáImagens

O coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil de Pernambuco (PETI PE), Leônidas Leal é usuário de metrô e conta que passa por situações diárias que envolvem o trabalho infantil. “Já presenciei várias vezes crianças fugindo de fiscalização, correndo risco de acidente. Inclusive, uma das coisas que ouço bastante é que quando há apreensão de mercadoria no flagrante de comercialização dentro das estações, os fiscais ficam com a mercadoria para si. Ou seja, há um despreparo notório nessa questão da vigilância. Além disso, outra coisa que também noto é a conivência dos vigilantes. Muitas vezes eles fazem ‘vista grossa’ para o que estão vendo. O que só piora ainda mais a situação”, relata.

Num giro pelas estações de BRTs, por inúmeras avenidas da RMR, é notória a presença do trabalho de crianças e adolescentes, porém de forma mais discreta. Dentro da Estação da Avenida Guararapes, localizada na área central do Recife, um adolescente de 17 anos comercializa livremente a sua mercadoria. Ele conta que, todos os dias, passa pela Avenida Conde da Boa Vista e pelo Derby, importantes corredores de mobilidade da capital pernambucana, porque tem mais gente e assim ele pode lucrar mais.

“É muito triste ver que tem tanta criança e adolescente tendo que trabalhar. Entendo que muitas vezes não é só culpa dos pais, mas de um contexto histórico que ‘obriga’ algumas classes a isso, por questão de necessidade mesmo”, declarou a funcionária pública, usuária do BRT, Suzane Dias.

Segundo o governo federal, da década de 1990 para hoje, a realidade do trabalho infantil foi transformada. “Há menos de 20 anos tinha crianças de nove anos de idade trabalhando em carvoarias e em tantos lugares perigosos. Hoje transformamos completamente essa realidade”, afirmou a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello. A falta de renda das famílias e de acesso a escolas geravam esse tipo de situação. Com a criação do PETI e do Bolsa Família, em 2003, as famílias mais pobres e seus filhos começaram a viver uma nova realidade, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2014, realizada pelo IBGE. Hoje, 80% do trabalho infantil está concentrado na faixa etária de 14 a 17 anos.

Ações

Leônidas Leal conta que, entre os anos de 2014 e 2016, uma parceria entre a sociedade civil e o poder público realizou ações de identificação e sensibilização do trabalho infantil. Na época, ele fazia parte do Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil em Pernambuco (Fepetipe). “Foi um trabalho conjunto bem eficaz que contou com a colaboração de várias instituições e órgãos ligados ao segmento. O projeto envolveu atividades de conscientização de que o trabalho infantil é proibido, através de abordagens das pessoas nos metrôs, como também veiculação de material midiático explicativo. Trabalho que infelizmente parou em 2016”, detalha. Para Leônidas, o grande desafio é a inserção de políticas públicas qualificadas de assistência que permaneçam em prol das camadas pobres brasileiras.

Em resposta aos flagrantes de trabalho infantil no metrô, a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), unidade Recife, responsável pelos sistemas de transporte de passageiros sobre trilhos no País, informou que um grupo de trabalho realiza campanhas de conscientização da população sobre o trabalho infantil. De acordo com a CBTU, mensagens produzidas pelo Ministério Público estão sendo veiculadas por meio do sistema de sonorização dentro dos trens e nas estações, como também campanhas estão sendo divulgadas nas redes sociais e entre os funcionários da Companhia.

A CBTU Recife informou ainda que ações de fiscalização são executadas dentro do sistema e estão sendo intensificadas para evitar o trabalho infantil e que um procedimento da área de segurança da empresa também foi desenvolvido para ações neste sentido. Apesar dos esforços, ainda há registros de crianças e adolescentes trabalhando no metrô.

Dificuldades

De acordo com Hemi Vilas Bôas, analista de projetos sociais do Centro Integrado Empresa-Escola (CIEE) e que compõe a coordenação Fepetipe, a maior dificuldade é a banalização do trabalho infantil, a naturalização com que o assunto é levado. “É como se o trabalho infantil fosse uma coisa legal, mas não é. Fazendo uma análise das justificativas para a existência desse trabalho, o que mais ouvimos é ‘é melhor está trabalhando do que roubando ou usando drogas’, ‘trabalha porque não tem com quem ficar’, ou ainda que o trabalho vem da necessidade da criança ou adolescente de contribuir em casa e complementar a baixa renda para atender as necessidades básicas da família’”, explica. Assita mais explicações no vídeo a seguir:

A analista também ressalta que uma das grandes dificuldades é a fragmentação dos trabalhos desenvolvidos tanto pela sociedade civil, como pelo governo. “São muitas ações partidas. Falta mais parceria, mais políticas públicas eficazes. Mais envolvimento entre órgãos públicos e sociedade civil”, finaliza.

Próxima reportagem